O Homo Literatus entrevistou Marcelo Moutinho, escritor carioca que acabou de receber o prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, por Ferrugem
Marcelo Moutinho é um contista raiz. Não publicou e não pretende publicar um romance tão cedo.
“Assim como a opção pelo conto e pela crônica, gêneros que talvez estejam hoje no último lugar da fila em termos de prestígio no mercado, no jornalismo especializado e na crítica, não é nenhuma tentativa de remar contra a maré. Até hoje, as histórias que imaginei cabiam melhor em narrativas curtas. Não vou alongar uma trama apenas para que venha escrito “romance” na capa do livro. Tampouco vou me forçar a escrever um romance porque o mercado, as editoras ou os jornais tendem a considerar – equivocadamente – que esse gênero é superior aos demais. A literatura é, para mim, o território da liberdade.”
Nascido em 1972, no subúrbio do Rio de Janeiro, o autor gosta de literatura, futebol, samba e cerveja – não necessariamente nessa ordem, como deixou claro em uma mesa durante uma festa literária no interior do Paraná, em outubro, quando nos conhecemos. É jornalista de formação, atualmente trabalha na OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil – subseção do Rio de Janeiro ), na superintendência de comunicação.
Marcelo Moutinho acabou de ganhar o prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, pelo livro Ferrugem (Record, 2017). Além de Ferrugem, Moutinho é autor de Na dobra do dia (Rocco, 2015), A palavra ausente (Rocco, 2011), Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006), Memória dos barcos (7Letras, 2001), além do infantil A menina que perdeu as cores (Pallas, 2013).
Dias antes de receber o prêmio, o Moutinho conversou com o Homo Literatus. Ele falou sobre o seu mais novo livro, a situação do Rio de Janeiro e a opção pelo conto.
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Homo Literatus: Todos os contos do seu livro têm diálogos. Uns mais, outros menos. Todos são permeados por personagens diferentes: a menina que vê o irmão bolinar a boneca dela; o homem que é o cover do Roberto Carlos; a mulher que espera a paixão na praia. Como você cria a voz dos seus personagens?
A partir da observação. Ferrugem é um livro muito ligado à experiência de caminhar pela rua, ouvindo a cidade – na medida que a cidade tem um discurso, expresso na fala daqueles que passam, nos bordões dos ambulantes, nos diálogos entre passageiros de um ônibus ou do metrô. O discurso da cidade é essa polifonia de vozes e também sua topografia, uma barafunda de construções, cartazes, letreiros, anúncios, gambiarras. Walter Benjamin afirmou certa vez que um escritor deve andar numa cidade como se andasse numa floresta. Ele se referia ao aguçamento dos sentidos, fundamental para a sobrevivência no ambiente selvagem, e que no espaço urbano possibilita que o senso de observação também esteja aguçado. Para criar os personagens de Ferrugem, e seus diálogos, parti então dessa premissa. A outra perspectiva foi de que o conjunto de personagens representasse, de certo modo, o indivíduo sem glamour, aqueles com quem esbarramos cotidianamente em funções meramente utilitárias, sem muitas vezes imaginar as histórias que trazem no fio de suas vidas. Ferrugem quer contar essas histórias. Acho que o escritor (e grande amigo) Antonio Torres definiu bem o livro quando disse que era uma “suíte para o homem comum”.
HL: Você é nascido e criado no Rio de Janeiro. Neste livro, os contos se passam na cidade. A Cidade Maravilhosa é a sua maior inspiração?
Minha maior inspiração é a rua. Como moro no Rio, e circulo bastante pela cidade, naturalmente esse espaço geográfico tem uma presença maior nos meus contos. Acredito na ideia da aldeia que contém a universalidade, expressa na conhecida máxima de Tolstói. A lógica centro/periferia, por exemplo, com todas as consequências ontológicas e existenciais que encerra, se repete em diferentes bairros, cidades, países. E o chamado “homem comum”, este de que falo na pergunta anterior, está igualmente presente nesses diferentes lugares. Penso agora no cineasta Robert Guédiguian. Em outro suporte (o cinema) e outro país (França), ele se inspira igualmente no universo da classe média baixa e do indivíduo sem glamour.
HL: Na orelha do livro, o escritor Alberto Mussa diz que você se afirma “com uma voz singular e inconfundível”. Como fazer para ser diferente – ou buscar o diferente – em meio a tantos escritores?
Mussa foi extremamente gentil no texto da orelha. É um escritor que admiro e um grande camarada de samba, cerveja e conversas. Com toda a sinceridade, não busco ser diferente, apenas fiel ao que me levou a escrever ficção. Os temas, os personagens, a ambiência são fruto de inquietações pessoais e de um interesse genuíno pelas vidas que escorrem fora do ambiente da academia e da intelectualidade. Assim como a opção pelo conto e pela crônica, gêneros que talvez estejam hoje no último lugar da fila em termos de prestígio no mercado, no jornalismo especializado e na crítica, não é nenhuma tentativa de remar contra a maré. Até hoje, as histórias que imaginei cabiam melhor em narrativas curtas. Não vou alongar uma trama apenas para que venha escrito “romance” na capa do livro. Tampouco vou me forçar a escrever um romance porque o mercado, as editoras ou os jornais tendem a considerar – equivocadamente – que esse gênero é superior aos demais. A literatura é, para mim, o território da liberdade.
HL: Você é uma pessoa muito ligada ao samba, mas, com exceção de um conto (“Três apitos”) nenhum outro tem referência direta ao gênero. Entretanto, assim como no samba, os contos em Ferrugem mostram, de certa forma, o dia a dia do carioca. É possível dizer que você faz no livro o que João Nogueira fazia no samba: exibir os tipos do Rio de Janeiro?
Na verdade, sou ligado à música brasileira, de forma mais ampla. Sob essa perspectiva, podemos dizer que ela está bastante presente nos contos de Ferrugem. Está, por exemplo, em “As praias desertas”, que evoca a canção de Tom Jobim; em “Três apitos”, que você mencionou na pergunta; em “Rei”, cujo protagonista é um cover do Roberto Carlos; e também em “Dezembros”, cuja trama envolve a história da Rádio Nacional. Quanto a exibir os tipos da cidade, de fato o livro tem essa característica. Que é um traço do samba justamente porque em muitos momentos o samba dialoga com a crônica. Podemos lembrar de compositores como Noel Rosa, Chico Buarque e Aldir Blanc, que ao longo da história fizeram crônica sob a forma de canção.
HL: Um dos contos que mais gostei é o “Rei”, que fala sobre Severino Antônio de Sousa, um cover de Roberto Carlos há quase duas décadas que toca em uma boate, a Pussy House. O conto tem ritmo, tem drama pessoal, tem drama histórico e é muito visual. Sinceramente, seria ótimo se fosse levado às telas. Já pensou nisso?
Não é muito comum que um conto, ou um livro de conto, seja levado às telas. Eu adoraria, claro, inclusive porque sou um grande fã da arte cinematográfica. E até acho que Ferrugem funcionaria numa adaptação, sobretudo num formato como o de “Short cuts”. Ali, o Roberto Altman literalmente remontou as histórias criadas pelo Raymond Carver, conseguindo fazer um interessantíssimo mosaico sob a forma de longa-metragem.
HL: O Rio de Janeiro vive um conturbado momento político e econômico. Todos os ex-governadores vivos estão presos. Isso é noticiado todos os dias, ao longo das 24 horas. Como cidadão, como você avalia tudo o que está acontecendo?
Vejo tudo com tristeza, mas sem surpresa alguma. Os esquemas de corrupção no Rio funcionam há várias décadas, sob a coordenação desse câncer nacional que se chama PMDB. No caso do município, a questão agora ganhou contornos ainda mais terríveis com o desastre Crivella. Um governo que, a todos os vícios dos anteriores, somou a intolerância, um indisfarçável nojo da potência da rua como espaço de encontro e de efervescência cultural.
HL: Qualquer coisa pode virar material literário. A situação atual do Rio de Janeiro te interessa?
Claro que acompanho com atenção a situação do Rio e que, como cidadão, me indigno e me manifesto. Mas, tanto na crônica quanto no conto, meu interesse é pelas pequenezas, pelo miúdo, por aquilo que não rende manchete. O que há de político na minha produção ficcional está sobretudo nisso.