Entre veias poéticas e abraços duros de Eduardo Galeano

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A história da América Latina tem como pano de fundo o vermelho, cor de sangue derramado: é constituída de abusos, explorações e lutas desde o período colonial. As principais narrativas sobre a região, passadas aos estudantes nas fases iniciais de aprendizagem e muitas vezes repetidas ao longo da alfabetização, costumam ignorar ou não dar a devida atenção às vozes dos marginalizados, às minorias sociais. Que história, afinal, conhecemos? A do “soldado raso” ou a do “comandante”?

Segundo o historiador britânico Jim Sharpe, a história tem sido encarada desde os tempos clássicos como um “relato dos feitos dos grandes”. Dando preferência ao “soldado raso”, o escritor, jornalista e ativista político uruguaio, Eduardo Galeano, realiza dois exemplos de narrativas críticas, que se constituem como modelos totalmente opostos e fogem da visão tradicional e eurocêntrica normalmente contida nos livros didáticos. São elas: As Veias Abertas da América Latina, obra de 1970, e O Livro dos Abraços, que teve sua primeira edição em 1991.

No primeiro livro, Galeano traça um histórico da América Latina, passando pelo período colonial e indo até a contemporaneidade. O autor explica o porquê do subdesenvolvimento, a partir do resgate histórico da exploração (ainda atuante) das “grandes potências imperialistas” na região. A obra, concebida em três meses pelo uruguaio, foi publicada quando vários países latino-americanos sofriam ditaduras militares – o que fez com que fosse restringida em muitos deles, inclusive no próprio Uruguai. Com uma narrativa mais acessível, beirando ao literário, a Veias Abertas ganhou mais popularidade em 2009 quando o presidente venezuelano Hugo Chávez presenteou Barack Obama, atual presidente dos Estados Unidos, com uma edição autografada.

O livro se tornou famoso e obra de referência entre estudiosos e acadêmicos. Mas também foi alvo de críticas pela imparcialidade, por não trazer dados com referências completas ou até mesmo pelo tom literário e ideológico, incomum ao ser abordado diante de fatos históricos. Neste ano, Galeano afirmou, em resposta a perguntas feitas uma feira de livros, que Veias Abertas pretendia ser um livro de economia e política, mas ele não tinha, na época, o treinamento e o preparo necessários para escrever sobre esses temas. Também disse que não seria capaz de reler seu próprio livro e que “cairia dormindo” caso o fizesse. “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é extremamente árida, e meu físico já não tolera”, declarou. Apesar da autocrítica, a leitura ainda é válida.

A obra, separada em duas partes, tem uma linha narrativa que percorre a história da exploração dos principais recursos naturais latino-americanos, desde a descoberta da América até a década de 70. São eles o ouro, prata, açúcar, cacau, café e minerais (com ênfase no cobre, estanho e petróleo). Através desses produtos, o autor conta como a economia colonial se estruturou em função e a serviço das necessidades do mercado europeu e, mais tarde, norte-americano.

Um dos pontos mais frisados por Galeano é a exploração de mão de obra gratuita, principalmente a indígena. Populações foram dizimadas devido às lutas contra escravidão e servidão forçada. Suas terras foram usurpadas e as identidades culturais e sociais, despedaçadas. Alguns foram derrotados pelo assombro ao ver o homem branco montado ao cavalo, animal extinto na América pré-colonial. Milhares morreram por contrair vírus e bactérias trazidos pelo homem branco. Tornou-se comum, na época, famílias inteiras se suicidarem para não serem forçadas ao trabalho escravo. “A quantas Hiroshimas equivaleram seus extermínios sucessivos?”, questiona o jornalista uruguaio, em referência à explosão da bomba atômica, em 1945, que matou 70 mil pessoas somente nos 20 primeiros segundos.

As Veias Abertas da América Latina dá voz aos que nunca tiveram, aos heróis das guerrilhas, àqueles que resistiram contra o regime operante e foram esmagados pelas forças dominantes e imperiais. Para o uruguaio, o subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento, e sim uma consequência; e a história do subdesenvolvimento da América Latina integra a do desenvolvimento do capitalismo mundial. “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros”, expõe no livro.

A conclusão do autor, ao final de sua escrita, é clara: a América Latina continua servindo às necessidades alheias, exportando produtos primários a países ricos, oferecendo mão de obra barata às multinacionais e fazendo com que o mercado externo dominante lucre cada vez por meio dos empréstimos concedidos e das inversões estrangeiras feitas nos mercados internos. Em outras palavras, as veias continuam abertas e sangrando dependência. A exploração internacional continua, apesar das alterações em suas formas de atuação. “A engrenagem internacional continuou funcionando: os países a serviço das mercadorias, os homens a serviço das coisas”, escreveu Eduardo Galeano.

Duros abraços

Eduardo_Galeano_-_conferenza_Vicenza_2Se as Veias Abertas são poéticas, os Abraços de Galeano – aparentemente leves e confortáveis ao primeiro olhar (ou folhear de páginas) – são amavelmente inquietantes. É o que se sente (sim, emprega-se aqui o verbo “sentir”) ao se absorver O Livro dos Abraços, de 1991. De rápida leitura, a obra reúne pequenas histórias que, apesar de serem miúdas no tamanho, marcam pela intensidade das ideias. Trata-se de uma crítica social que atrai sorrisos e semblantes entristecidos ao mesmo tempo, uma obra que “pierrotiza” o leitor. São relatos, textos poéticos, alguns pessoais, outros, nem tanto; pequenices marcantes pela simplicidade misturada à posição política dos pensamentos.

Como o próprio título diz, o ato de ler se torna um afago, um abraço, cafuné – um carinho que instiga. Instiga pelo olhar aguçado, que captura os fatos que não costumamos olhar ou ignoramos no cotidiano; atrai pelo ar sonhador, presente com intensidade nas linhas mais tristes. Ao ler Veias Abertas e depois partir para este livro, percebemos um Galeano mais humano, sensível. Pode-se pensar que O Livro dos Abraços consiste nos bastidores de Veias Abertas por mostrar aquelas histórias perdidas, por ora escapulidas na obra de 1970, que retratam os personagens comuns, normalmente não citáveis e “irrelevantes” na “história dos grandes” . Ali, os excluídos e marginalizados da sociedade (índios, crianças, presos políticos) estão todos envoltos e abraçados pela poesia. A própria contracapa traz um aviso: “Abra esse livro com cuidado: ele é delicado e afiado como a própria vida.”

Leia trechos de O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano:
A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar!

A pequena morte

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.

O sistema/1

Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juizes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.

As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados.

O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas.

 

Veja a entrevista do autor ao programa Sangue Latino, do Canal Brasil, gravado em 2009, aqui.

 

 

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