O outro lado da sombra: O jogo de luzes de Mariana Portella

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O outro lado da sombra, o primeiro romance da carioca  Mariana Portella, possui notável maturidade lírica.

“Mas se Deus no ano zero tivesse dito a mim, assim como a todos os outros homens:”Sim, depois da morte há algo”, o que seria da humanidade? Não sei a resposta, mas sei com certeza que teria tolhido a mim e aos outros a possibilidade de pensar, de criar mitos, lendas; teria abortado a fantasia, a criatividade, a arte, isto é, tudo aquilo que de mais belo o homem, desde que existe, criou, deu vida, partindo justamente da escuridão.”

É na escuridão de Soren, o angustiado músico desistente, que Mariana Portella nos joga ao apresentar o seu primeiro romance, O outro lado da sombra, publicado pelo Rocco. Ambientado numa Itália pouco distante, onde os nomes pomposos são o único vestígio de um estrangeirismo inusitado, a trama nos sussurra os pensamentos de um personagem cuja melancolia desfolha-se nos meios mais diversos: cartas de tarô, auspícios no vento, pesadelos simbólicos, relógios de corda e alegorias aos moldes de um Dante Alighieri pós-moderno.

Num lirismo despretensioso que encontra notas altas tal como nas músicas de Soren, Portella, filha do respeitado escritor e membro da academia brasileira de letras Eduardo Portella, acumula os pedaços de um jovem desencontrado com a própria vida, incapaz de lidar com a finitude sem transmutá-la no fantasma de uma ansiedade corrosiva. Acompanhamos o protagonista nas reminiscências da morte do pai, a primeira peaça ausente de um quebra-cabeças desencontrado. As consequências dessa ausência para a família são muitas, e Soren terá de carrega-las nos ombros pelo resto da vida. A idade adulta lhe guarda surpresas, e ele divide os amores de duas mulheres que serão matizes importantes no mergulho da sombra que recobre todo o seu trajeto.

A primeira paO-outro-ladorte do romance é uma coleção de fragmentos da família chocando-se à primeira cena de tensão, em que Soren viaja para Dublin e sofre um acidente de proporções inesperadas. Os sentimentos vívidos do personagem retraído são expostos numa quebra insistente, e ao acompanhá-lo, o leitor sente nos pés os cacos de vidro de uma natureza fragmentada, rica em descrições psicológicas e personalidades convincentes.

Até chegarmos do outro lado da sombra, Portella flerta com a fantasia, confeccionando mundos imaginários e jogando o realista, palpável Soren num limbo fantasmagórico. E então começa o desencontro da obra: ao leitor mais aberto, estranha-se a brusca mudança de gênero; para uma simbolista macabra, Portella permanece longe demais do surreal na primeira metade do livro. Mas só tropeça de fato quando as alegorias acabam: de volta à normalidade, a tensão do livro se esvai de tal forma que a resolução imediata, quase ansiosa, perde pontos de credibilidade.

Soren sofre uma espécie de amnésia seletiva, e parece ao mesmo tempo esquecer-se da sua essência; evolui drasticamente, tornando-se um personagem completamente novo, cujo destino é um clichê incrivelmente maravilhoso, quase hollywoodiano. Mariana deixa as próprias palavras escoarem, perdendo-se nas sombras dos cantos, e o final é de uma luminosidade entorpecente que não combina com a melancolia inicial, nem com a escuridão na qual o leitor habitua-se a caminhar a passos sedentos.

O outro lado da sombra torna-se um jogo de luzes traiçoeiro, e, apesar do potencial poético, a autora deixa cair clichês sobre as linhas do romance. Em uma das cenas, Soren tem o auspício da morte de uma personagem quando a carta do arcano da Morte é trazida a si pelo vento. Mais tarde, encontra-se com uma espécie de mentor que lhe confia verdades ligeiramente óbvias. O próprio diálogo interno do Soren amnésico é meio terapêutico, meio lobotomia; de repente não há espaço para a sombra, e já não se entende de fato o que há do outro lado. O último terço do romance parece um livro completamente diferente, e é difícil criar empatia por um personagem que já não tem conflito, e cuja resolução não guarda nenhuma surpresa.

Para um primeiro romance, no entanto, a autora demonstra uma maturidade lírica notável, mas é mais forte na melancolia do que nos gloriosos opostos. Tal qual a reflexão de Soren, há no desalento da escuridão uma dádiva única, e Mariana, quando toca nas sombras, é de um talento estrondoso. O pós-vida, ou pós-conflito, nesse caso, acaba tolhendo as possibilidades da escuridão, sacramentando a profecia conjecturada pelo próprio narrador.

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