K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski

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K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, é mais do que um romance, trata-se de uma reflexão sobre o hábito que os brasileiros têm de passar por cima das tragédias e homenagear facínoras

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Bernardo Kucinski, o autor de “K. – Relato de uma busca”

Há dois períodos históricos que muito me atraem, seja por meio de filmes ou livros: a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar brasileira. Este último foi bastante abordado e discutido em 2014, por ser o ano que marcou os cinquenta anos do Golpe Militar. Na Flip, a mesa composta pelos escritores Marcelo Rubens Paiva e Bernardo Kucinski, pessoas que tiveram suas famílias atingidas pelos tentáculos do regime militar, foi marcada por justificável carga emotiva. Não podemos esquecer, é claro, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, no qual 377 agentes do Estado (muitos já mortos) foram culpados por violar direitos humanos de 1946 a 1988.

Em uma lista publicada pela revista Bula, na qual Sérgio Tavares classifica quinze livros obrigatórios dos últimos quinze anos da literatura brasileira, estava K. – Relato de uma busca, escrito pelo mesmo Bernardo Kucinski citado acima e editado pela Cosac Naify. A história: um pai que escreve sobre a filha que teve sua existência interrompida pela ditadura militar, um “mal de Alzheimer” nacional. Meu interesse já mencionado pelo terrível período histórico fizeram com que adquirisse e lesse o livro rapidamente.

K. é o nome do pai, protagonista do romance que procura sua filha, professora de química da USP, desaparecida misteriosamente. Em meio à busca, ele percebe o quão distante esteve da filha antes de seu sumiço. A mulher atual e o estudo do iídiche afastaram-na dos pequenos rituais familiares. Afastaram esse letrado judeu polonês da terrível realidade política do país que havia escolhido para morar. Pequenos retornos temporais dão conta de descrever a filha desaparecida, uma militante impulsionada pela paixão política do também desaparecido marido.

A obra é literatura de testemunho que descreve um regime longe de ser uma “ditabranda”. K.  vê-se de mãos atadas. O habeas corpus era proibido em casos de prisões por motivações políticas. Quando tenta buscar ajuda de pessoas que poderiam possuir algum tipo de influência, depara-se com um enorme labirinto, uma São Paulo que, além dos inimigos óbvios, está apinhada de opositores invisíveis, obscuros e sorrateiros: os informantes. São delatores que se unem para encobrir a realidade e criar uma nova, para iludir e afastar o pai desesperado. Além do desgaste pelas buscas que não dão em nada, K. tem que enfrentar aproveitadores que tiram proveito da situação com falsas promessas e informações. Uma guerra psicológica na qual pistas falsas e mentirosas são jogadas ao vento para humilhar e tapear familiares. K. já não busca mais sua filha, mas um corpo, uma lembrança que possa ser enterrada, eternizada.

O horror e escalabro do regime militar brasileiro desenterra imagens do violento passado na Polônia. Os nazistas registravam seus mortos. Segundo Kucinski, os militares brasileiros foram pioneiros em volatizar pessoas, processo chamado por ele de “sumidouro”. A instituição militar estimula seus integrantes à adulação do superior para conseguirem patentes mais altas. Os métodos de tortura são baseados nas máquinas mortíferas da época da Inquisição.

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K. – Relato de uma busca (Cosac Naify)

Apesar de tanto tempo já haver passado, uma tendência herdada pela Polícia Militar dos dias de hoje já se fazia presente: ter como alvo negros e nordestinos. No IML, os corpos vitimizados pelos policiais são todos de negros, em sua maioria indigentes.

Mais do que um romance, K. – Relato de uma busca é uma reflexão sobre o hábito que os brasileiros têm de passar por cima das tragédias e homenagear facínoras. O Brasil é um país no qual generais que matavam e torturavam são homenageados dando seus nomes a ruas e avenidas. Os brasileiros têm o estranho hábito de homenagear bandidos, torturadores e golpistas.

A história é cíclica e, assim como naqueles dias, esquerdismo virou sinônimo de terrorismo. Depois de terminar a leitura, foi inevitável não pensar nas pessoas que têm ido à Avenida Paulista pedir por intervenção/golpe militar.

Melhor tomar cuidado com o que se deseja.

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