Liv Ullmann e sua mutações

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A atriz que agride a alma entorpecida com suas interpretações adentra a literatura para fazer emergir em sutis palavras a sua pluralidade permeada de sensibilidade, em sua autobiografia Mutações.

ullmann

A transfiguração de Liv no livro aparece em tom confessional, como sussurros íntimos, forjados numa beleza melancólica. Desvelando inquietações de modo sincero e poético, a atriz contemplada internacionalmente desconstrói toda a carga de estereótipos que sua profissão exige, mostrando a humanidade que assusta de certa maneira, ou seja, as “fraquezas” que a sociedade rotula e mutila, como a insegurança e, principalmente, a solidão.

A solidão acolhida e utilizada como propulsora de autoanálises e mutações (voluntárias ou não) é pertinente no percurso pessoal de Liv. Desde menina, conflita-se e aconchega-se no desdobramento de tal redoma.

“Existe uma menina dentro de mim que se recusa a morrer” é a citação que Ullmann incorpora para relatar, de certo modo, sua insegurança. Seu ser com resquícios de fantasias sendo ressonância da criança que ainda grita. E necessária para a construção do seu real peculiar. Parafraseando o poeta Manoel de Barros: a menina que Liv foi ainda a plange. Como no trecho:

Sua voz é ansiosa, quase sempre de protesto, embora algumas vezes débil e cheia de angústia. Não quero lhe prestar atenção, porque sei que nada tem a ver com minha vida adulta. Mas a voz me deixa insegura.

mr. ullCom aflição, Liv desempenha seu papel de mãe e de “dona do lar”, envolta num espectro imperativo, culminando num sentimento de culpa, pois a ideologia massacrante onde ela está inserida renega a mulher fora dos limites impostos. Assim, essa lógica é incutida sorrateiramente, deixando o rastro da culpa típica desse mecanismo. Desvincular-se disso é ultrapassar os medos imemoriais. Para a sua verdadeira articulação, Ullmann se agarra, de certa forma, em Nora (a personagem da aclamada obra da dramaturgia norueguesa Casa de Bonecas, de Ibsen).

A personagem de Nora é uma típica mulher da sociedade falocêntrica, onde a negação do ser feminino é altiva, pois sua autonomia é ofuscada pelo dogmatismo desse sistema. Mas sutilmente ela se constrói no silêncio, e na sequência final dá o seu grito abafado por muitos anos, sendo voz dos estandartes do feminismo. Não é por acaso que Mutações é perpassado pelos relatos de Liv acerca das sinuosidades de interpretar Nora (Ullmann encarnou durante algum período a personagem de Nora nos teatros do mundo).

Ao discorrer sobre seus percalços, anseios e conflitos sobre a realidade de ser atriz, Liv estrutura também um livro para artistas das artes cênicas; uma espécie de “manual” lírico sobre a perspectiva de uma atriz sobre sua arte, aconchegando outros que se expressam nessa linguagem.

Talvez o mais esperado no livro seja a perspectiva de Ullmann acerca do seu relacionamento de cinco anos com Bergman. O relacionamento é uma história que passa pela ruína necessária para se compreender o espaço cheio de abismos. “Às vezes temos que recuar para poder apreciar uma obra de arte” citação que dialoga com o olhar de Ullmann ao se separar de Bergman, já que foi no princípio do fim que ela aprendeu a amá-lo (em sentido amplo), em toda sua complexidade.

ullmann e bergman

Aos poucos, dentro dela, despertou uma compreensão em relação a ele. Quanto mais ele se afastava dela, melhor ela o entendia – como se a distância lhe desse lucidez. (…) Não estava mais cega para seus defeitos e fraquezas, como no começo. Mas sua compreensão e respeito por ele cresceram.

Seu entrelaçamento com a filha Linn (filha de Bergman) é belíssimo, pois há uma espécie de troca, principalmente de filha para mãe, frutífera, no sentido do aprendizado pela sabedoria infantil. Há várias passagens onde o que existe é a reinvenção do cotidiano. As duas, por vezes, ultrapassam o pragmatismo da sociedade e embarcam na poesia. Como quando conversam com as árvores, sobre árvores… A poesia do inútil é reverenciada pelas duas crianças.

mutacoes-liv-ullmannOrfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!
E tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime
Nasceu novo principio, gesto e transformação.

Versos do poeta Rilke que representam, dentre outras perspectivas, uma transgressão por parte de Liv ao se voltar para o que a sociedade rejeita, adentrando em si para ser sempre movimento. Ser mutante na estagnação de uma época.

Mutações 
Liv Ullmann
Ciclo do Livro
252 páginas

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