AVISO: esta deveria ser uma matéria normal, mas o 2º Festival Literário de Extrema (FLEX) foi tão incomum (desde o tema, “A violência na literatura”), que o Homo Literatus não poderia deixar de fazer uma cobertura compatível
A citação do título foi proferida pelo escritor Reinaldo Moraes no sábado, em mesa dividida com Raphael Montes e mediada por Cadão Volpato, cujo o tema era: “Literatura escrita com sangue.”
(Dizem que Reinaldo começou a beber no almoço e parou depois das duas da madrugada, mas isso é conversa para outro carnaval).
Ao divulgarmos que o Homo Literatus iria cobrir, pelo segundo ano consecutivo, o Festival Literário de Extrema/MG, levantamos a pergunta: você está preparado para um festival literário violento? E, claro, seguiu-se a preocupação de que uma chamada assim elevaria a expectativa das pessoas – afinal de contas, desde sempre, o ser humano se interessa por violência.
No entanto, quem foi ao FLEX, assistiu às mesas de debate, à amostra de cinema, aos shows ou se divertiu nos games infantis, com certeza teve sua expectativa em muito superada. Nas palavras do escritor Raphael Montes: “essa é uma das melhores programações que já vi para um festival de literatura”.
Parte deste sucesso começou com a escolha do homenageado: Rubem Fonseca. Um dos mais importantes escritores da literatura brasileira contemporânea, Fonseca revolucionou o conto e marcou presença também em outros gêneros, tal qual a crônica e o romance. Como enfatizou o Diretor do Conteúdo Crítico do Homo Literatus e assessor do festival, Márwio Câmara: “não há quem tenha lido o Rubem e não tenha sido influenciado.”
Curiosamente, antes do evento, um curtidor do Facebook do FLEX perguntou “que dia o Rubem Fonseca ia participar das mesas”. Como muita gente sabe, este gênio é recluso. Ainda assim, pode-se afirmar que ele esteve presente em todas as discussões, direta ou indiretamente, sendo o centro dos debates.
A começar pela primeira das mesas (sexta, 14), com o professor e estudioso da obra de Fonseca, Ariovaldo Vidal, e a escritora e amiga próxima, Paula Parisot. Vou me poupar de daqui para frente citar que Cadão Volpato mediou as mesas, pois ele foi o responsável por todas elas, provocando um equilíbrio entre os participantes mais diferentes. Foi o caso de Ari e Paula. Enquanto o professor apresentava a visão de seu estudo sobre os contos de Rubem Fonseca, destacando que cada vez mais os textos vão se encurtando, embora mantenham uma expressão que apresenta o corpo; Parisot contava anedotas sobre sua relação com Rubem, com destaque para a maneira como se conheceram: “Eu observava um homem com características muito semelhantes ao Rubem passar por alguns lugares em que eu também frequentava. Um dia deixei a insegurança de lado e resolvi perguntar se era ele mesmo. De primeira, o Rubem quis saber se eu era jornalista, e ao descobrir por mim que se tratava apenas de uma admiradora de seus livros, logo fomos nos tornando amigos.”
A “mesa-quente” do evento aconteceu entre o psiquiatra forense, doutor Guido Palomba, e a escritora, especialista em mentes criminosas, Ilana Casoy – tratando sobre “Violência: Ameaça Real e Silenciosa”. Eles passearam por situações perturbadoras e conhecidas de assassinatos múltiplos, como o caso Passeghini. Os métodos opostos dos profissionais – Guido se considera um técnico preciso, diferente de Ilana que trabalha sempre com entrevistas e o benefício da dúvida – acabaram provocando uma discussão com inúmeros pontos de divergência, para delícia da plateia, que ora tomava partido de um, ora de outro. O mais importante é que as perspectivas diferentes foram abordadas e feitas conhecidas.
As mesas de sábado (15), por alguma razão mística – uma mística literária – pareciam trocar os atores, mas manter o espetáculo. Em “Realidade e outras emoções”, os escritores Marcelino Freire e Edyr Augusto partiram da discussão da realidade X ficção para falar do cotidiano violento, da formação do leitor e até do escritor ser um mentiroso. Marcelino, a título de citação, disse sobre sua literatura: “eu minto, minto, minto até virar verdade.” Na sequência, o assunto da criação literária persistiu, na mesa já citada, entre Reinaldo Moraes e Raphael Montes, sobre “Literatura escrita com sangue.” Entre falas e cervejas, os escritores comentaram a respeito de suas produções literárias. Raphael revelou que O vilarejo, seu livro que está saindo este ano, é fruto de suas leituras com dezenove anos, em uma fase que leu Edgar Allan Poe e H.P. Lovecraft. Ao entregar o livro para a editora, chegou a sugerir que publicassem com pseudônimo, por ser um livro que dialoga com o horror/terror. Já Reinaldo Moraes levou o público às risadas em vários momentos, como ao mencionar “cigarrinho de artista” ao se referir à maconha, ou responder que estava sim acabando o livro que está escrevendo: “está com umas oitocentas páginas. Estou quase lá. Mais uns dois ou três anos, acabo.” A última mesa do dia aconteceu entre o escritor, quadrinista e ilustrador Lourenço Mutarelli e o cineasta Beto Brant, trocando ideias dentro do tema “Cinema adaptado”. Mutarelli usou da sua timidez que não esconde o grande artista que é para, junto com Beto, afirmar a possibilidade sim de o cineasta mudar a história quando reconta um livro no cinema. Afinal, são “visões” diferentes, uma expressão muito usada no decorrer do debate.
Antes de falar das mesas do domingo, no fechar das cortinas, precisamos citar a Mostra de Cinema que aconteceu no FLEX. Não adianta discutir de longe a questão das adaptações. E o Festival Literário de Extrema mostrou como faz. Exibiu os documentários Cidade de Deus – 10 Anos depois e A queima roupa; além dos filmes Elvis e Madona, Ação entre amigos e O cheiro do ralo. Todos com discussões posteriores aos filmes, até mesmo com presença de diretores como Cavi Borges e Beto Brant.
No domingo, formaram-se filas para a primeira mesa de debate do dia em frente ao lacônico prédio do Clube Literário de Extrema. O convidado, Marcelo Rezende, participou de um papo sobre “Jornalismo Investigativo”, no qual diferenciou o termo de “Jornalismo policial”. Segundo ele, enquanto o primeiro está na busca de solucionar um crime, o segundo segue a polícia, apenas mostrando o que já está feito. Também falou de seus desafios profissionais e da realidade brasileira, contando histórias pessoais e de sua carreira.
A última mesa do evento ficou por conta dos escritores Luiz Biajoni e Ana Paula Maia, discutindo o tema “Preconceito e outras minorias.” Sobraram momentos bem-humorados, como quando Biajoni disse que até ele mesmo se constrangia ao citar os títulos das novelas presentes em sua obra A comédia mundana (títulos como: Sexo An*l – Uma Novela Marrom, B*ceta – Uma Novela Cor-de-rosa e B*quete – Uma Novela Vermelha). Por sua vez, a escritora Ana Paula não se constrangeu ao falar de sua paixão por filmes western, traçando uma relação com a aridez de suas obras. Seu companheiro de mesa afirmou que ela era uma espécie de “Tarantina da literatura brasileira”. Outro momento áureo aconteceu ao ser encurralada pelo mediador sobre o porquê de não haver mulheres protagonistas em seus livros. “Tenho ciúmes dos meus personagens brucutus”, Ana respondeu.
O 2º Festival Literário de Extrema ficou marcado por sua programação heterogênea, pautada em um tema único e fundamental para o momento em que vivemos. Foram quatro dias de mesas de debate, Mostra de Cinema, shows, feiras de livros, teatro infantil e oficinas para todas as idades. Marcelo Spomberg, cineasta e organizador do evento define da seguinte forma: “Fico feliz que o projeto vem crescendo. Acredito que temos tudo para nos tornamos um dos maiores eventos literários do país nos próximos anos.”
E nossa torcida é para que a frase do escritor Reinaldo Moraes – “Livro é que nem sexo, depois que entra, vai” – vá além de sexo e livros, estendendo-se ao FLEX.