‘A Máquina de Madeira’ – Romance sobre o “Alan Turing” brasileiro

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O romance de Miguel Sanches Neto coroa Francisco João de Azevedo, injustiçado pela história e pela cobiça.

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Miguel Sanches Neto (foto do Cândido: jornal da Biblioteca Pública do Paraná)

Guardadas as devidas proporções sobre o impacto na vida das pessoas no século XX, a história do padre brasileiro Francisco João de Azevedo se assemelha à história de Alan Turing, recentemente homenageado pelo filme O jogo da Imitação, no qual ele inventa uma máquina que ajuda os Aliados a vencer a guerra e fica por séculos completamente esquecido pela humanidade.

Em A Máquina de Madeira, a homenagem é para um padre brasileiro inventor da máquina de escrever. Nesse romance, o escritor paranaense Miguel Sanches Neto constrói uma bela narrativa ambientada no Brasil império, onde muitas vozes ufanistas se levantavam para louvar as terras tupiniquins, tentando apagar as mazelas sociais e fingindo uma distância que separava o jovem país que há pouco se libertara da metrópole e deixara de ser colônia de seu passado. Dono de uma escrita seca e objetiva, Sanches Neto coloca como personagem principal desse romance histórico um personagem ímpar, Francisco João de Azevedo Filho, sacerdote que estudou e atua em Recife, mas nascido em João Pessoa na Paraíba, filho de um contraditório açoriano, combatente de uma milícia que lutava contra os estrangeiros que vinham para o Brasil, enriqueciam e depois deixavam nossas terras.

Azevedo era padre, maçom, mantinha relações com sua empregada alforriada Benedita (alguma longínqua ligação com Bertoleza do Cortiço, do também Azevedo?) e também era inventor, criador de uma máquina inspirada na tipografia, que podia escrever os discursos, sermões, cartas e quaisquer outros documentos, o que a tornaria mais ou menos bisavó deste teclado de computador no qual escrevo esta resenha. A narrativa começa justamente com a chegada de Azevedo ao Rio de Janeiro para uma feira na qual inventores brasileiros iriam expor para a comunidade e para o imperador Dom Pedro II suas invenções.

O protagonista destoa da maioria das vozes ufanistas que se exaltam durante a exposição, que tinha o intuito de mostrar o progresso brasileiro e que nossa nação não dependia de nada vindo do exterior. Os ingleses que aqui estavam torceram o nariz, um deles até tentou acabar com a exposição. De família pobre, Azevedo, que era defensor dos necessitados, sabia muito bem que a situação era muito diferente do que aquela que as vozes proferiam – o trecho parece atualizadíssimo, inclusive. O padre não se impressiona nem mesmo com o imperador, somente com sua filha, Isabel, pensando inclusive em batizar sua máquina com o nome da princesa – coincidência ou não, o Padre havia comprado sua empregada e amante e alforriado-a no mesmo instante, e a Princesa Isabel seria aquela que, por méritos próprios ou não, anos depois assinaria a lei áurea.

A máquina de madeira (Companhia das Letras, 2012)
A máquina de madeira (Companhia das Letras, 2012)

Personagem que existiu historicamente, Azevedo luta contra a opinião de uma sociedade que crê genial seu invento, mas que não vê muita utilidade nele – ah, se se pudesse ver o futuro. Como o próprio narrador diz, “um invento só passa a existir quando adotado pela indústria” e a indústria não via finalidade para tal invento. Mais parecida com um piano, possuindo inclusive pedais, essa máquina de escrever de madeira é diferente da máquina que conquistou boa parte do século XX, mas, com certeza, uma grande inspiração para o seu desenvolvimento – inclusive há quem afirme que o padre foi enganado por um amigo que lhe roubou a ideia e a fabricou nos Estados Unidos.

O romance em geral é coeso e coerente em si próprio, com um autor que domina o ofício da escrita e que teve um cuidado histórico na reconstituição dos fatos. O livro é dividido em duas grandes partes, intituladas “Londres” e “Nova York”, pois mesmo se  a narrativa se passa quase em sua totalidade em solo brasileiro , a primeira parte gira em torno da tentativa de envio da máquina para uma feira em Londres, e a segunda, sobre o possível roubo da ideia do padre por parte de um americano e a patente da máquina nos Estados Unidos.

Obra mista de características narrativas próprias à literatura contemporânea, misturada com a serenidade e a sobriedade que lembram uma narrativa escrita no século XIX, A Máquina de Madeira é um romance que coroa, enfim, o injustiçado Francisco João de Azevedo, que, de tanto amar sua criação, acabou por se transformar nela, devorado por cupins, literais e metafóricos. Miguel Sanches Neto é um bom nome na literatura paranaense, que vive, creio eu, um dos seus melhores momentos na história.

 

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