Noturno sem música ou o Werther pernambucano de Gilvan Lemos  

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Noturno sem música ou o Werther pernambucano de Gilvan Lemos   

Um Werther pernambucano anulado na melodia cotidiana

Gilvan Lemos
Gilvan Lemos

Quando Goethe pôs o ponto final nos Sofrimentos do seu jovem Werther, a arma não tinha falhado, muito menos a direção do projétil e, como Kafka faria mais tarde, toda dor humana somente pôde ser vertida pela completa e irrevogável aniquilação do sujeito. Pode-se dizer que Werther se aniquilou em razão de um dos mais comentados sentimentos humanos, justamente aquele que deveria salvar as pessoas.

Num paralelo quase perfeito ao do escritor alemão está Gilvan Lemos que, na construção do seu personagem Jonas, em pleno agreste pernambucano, demonstra que os tormentos amorosos não têm fronteiras, nem limites linguísticos, um pouco como se o amor fosse a língua da dor de todos. Gilvan vai compondo numa narrativa sem grandes pretensões, mas que pega o leitor, prende e revolve, um verdadeiro noturno digno de Chopin, cujas notas mais agudas são feitas de um silêncio orquestrado na surdina dos pensamentos – todo o livro é um passeio indiscreto pela mente de Jonas, o filho franzino de um dono de sítio soturno.

A primeira coisa que prende na obra é a sua qualidade duplamente plástica. De um lado, passeia-se pelas páginas de Noturno sem música como numa galeria de imagens do agreste pernambucano, ou mais: como se o fizéssemos ali, no lugar, vendo o calor infernal do verão e o frio congelante e úmido, não raras vezes pútrido de mofo, do inverno. E, doutro lado, o passeio que se dá é pela universalidade do sentir humano, das construções sociais, dos tabus redivivos, por assim dizer, pela existência do ente limitado e confuso chamado homem.

Filho de Numeriano e Inês, Jonas vive “preso” na convivência repetida de seus conhecidos, com o único alento do contato, ainda que às vezes abjeto, com a natureza circundante. E é nessa clausura geográfica, e mesmo interior, que o jovem protagonista se apaixona por Marta, mulher de Raimundo, seu patrão.

Com a leveza contumaz de um Milan Kundera, Gilvan Lemos faz Jonas ingressar pouco a pouco na vida adulta como cada um de nós: perdendo a inocência, a felicidade genuína e gratuita e a tranquilidade da ausência de objetivos na vida. A oportunidade da vivência do clariciano “agora”. Inês, sua mãe louca, grita o nome de seu pai assombrosamente todas as noites pelos corredores escuros da casa, assim: Numeriano! E esse nome do pai gritado à exaustão pela voz soturna da mãe repete-se em todo o romance, da mesma forma que na cabeça do Jonas, bem mais que um leitmotiv infernal, mas como a prova de que o passado não morre, de que o homem talvez seja a mistura dessas coisas que não mais existem com essas coisas que ainda não são. Toda a construção narrativa é tão imagética que se pode ouvir no funda da mente a voz rouca e grave de Inês: Numeriano!

A relação com o pai é marcada pelo binômio assombro-abandono tipicamente kafkiano e como em todos os grandes personagens do escritor tcheco, Jonas se sente uma formiga insignificante ante à figura corpulenta e austera do pai. Ao mesmo tempo toda uma narrativa memorial da infância, muitas vezes lúdica, é construída ao estilo José Lins do Rego, vai-se criando a complexidade de um personagem que, ainda que não seja de todo sombrio, caminha nas sombras. E o Jonas, como talvez cada um de nós, nem sabe se ama mesmo (e tanto) a pessoa objeto de sua dor. Assim como não sabe se ama Marta ou a ideia de amá-la, a imagem que constrói dela como tábua de salvação.

Cada personagem de Noturno sem música tem suas verborragias e os seus silêncios que, por vezes, dizem muito mais. Mas em todos, e sem exceção, está impregnada a realidade do homem vivente que pode tocar uma flor antes de arrancá-la da terra ou acariciar um cão com a mesma mão que o apedreja. O início e o fim da obra, como o início e o fim da vida, são tecidos, talvez jungidos pela simples e fática existência do nada que abunda em tudo no mundo. Esses são os personagens do Gilvan, esses somos nós.

É, pois, um dos grandes romances da literatura mundial, esse de estreia do Gilvan Lemos em 1956. Malgrado uma das insatisfações do autor à época tenha sido o silêncio dos críticos pernambucanos, o romance vive; nele, as angústias de um adolescente são o verdadeiro mote para o escancaramento da mesquinhez de nossos sonhos, da sutileza proustiana da natureza ao redor e, sobretudo da indiferença do mundo ante a nossa dor.

 

Referência

LEMOS, Gilvan de Souza. Noturno sem música. Recife: Cepe editora, 2016.

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