Em 1764, o excêntrico conde inglês, Horace Walpole, publicava o que seria o primeiro romance da Literatura Gótica. Conheça O Castelo de Otranto.
A primeira cena d’O Castelo de Otranto já professa o seu sucesso: no dia do casamento do único filho do autoritário príncipe Manfredo, um gigantesco elmo cai no pátio do castelo, esmagando o noivo. O absurdo da situação mal parece ter saído da pena de um aristocrático senhor de 47 anos, no auge do século XVIII, que fizera parte do Parlamento, sendo o filho de um ex-primeiro-ministro, e muito menos do pomposo Onuphrio Muralto, “cônego da Igreja de São Nicolas em Otranto”, nome fictício com o qual foi assinada a primeira versão. É apenas disfarçado, no entanto, que Horace Walpole consegue publicar o que classificou como uma tentativa de unir os gêneros de romance antigo e moderno: o antigo, no qual imperava a fantasia e a imaginação; e o moderno, no qual se buscava reproduzir a natureza com realismo. Em meio ao ambiente sombrio de uma Idade Média idealizada, os personagens de Walpole reagem às situações inusitadas com a estranheza de pessoas reais. Apesar de não haver qualquer densidade psicológica na recatada Matilde, na sonhadora Isabel ou na benevolente Hipólita, em Manfredo se vê a loucura acumular-se gradativamente, de modo que sua própria imprevisibilidade se torna um elemento de terror na trama, recheada de visões fantasmagóricas e reviravoltas dramáticas. Certo de que falharia, Walpole viu seu romance causar um estrondo na audiência inglesa, geralmente contida e racional, tal como o elmo, extraordinário e inesperado, sob o pátio do castelo de Otranto.
A premissa da história é simples, mas isso não a torna nem de longe menos complexa: há uma antiga profecia que diz que o castelo de Otranto e as possessões de Otranto viriam a faltar à presente família que as possuía, logo que o verdadeiro dono se tornasse muito “volumoso” para ali morar. O casamento de Conrado, o doentio filho de Manfredo, é organizado às pressas pelas ânsias do pai em escapar de tal enigmática maldição. Com os eventos extraordinários que o impedem, no entanto, a trama se intensifica: tomado pela loucura, Manfredo faz um prisioneiro entre o povo que observava a sua tragédia, prendendo-o sob o elmo, e determina-se a casar com a noiva do filho, Isabel. Daí em diante há ação o tempo todo; fugas, desentendimentos e paternidades questionadas; mortes, visões inexplicáveis e paixões ancestrais; lamentos, brados e até piadas. Há espaço para tudo nas linhas de Walpole, e ele tem um cuidado cirúrgico ao distribuir as emoções de cada acontecimento, descontraindo numa pausa cômica com os criados, criando expectativa para a continuidade dos mistérios, alterando os núcleos de personagens de forma a manter o leitor sempre ansioso, desconfortável, na sua própria normalidade, com o bizarro dos infortúnios de Otranto. Se há uma formalidade esquisita no estilo de Walpole, não é de estranhar: admirador de Shakespeare, ele chega a citá-lo exaustivamente no prefácio que faz à segunda edição da obra, na qual revelou-se como autor verdadeiro e defendeu-se das críticas ao humor com que pontuava diversas cenas. Foi nessa edição, também, que o autor adicionou o subtítulo “A Gothic Story” (“Uma História Gótica”) à obra, nomeando toda uma geração de escritos baseados no seu estilo.
O Castelo de Otranto é, portanto, considerado o primeiro livro do que ficou conhecido como literatura gótica. O termo “gótico” vem da Idade Média, referindo-se aos Godos, povo germânico considerado bárbaro. Foi usado, contudo, como uma maneira pejorativa de classificar a arquitetura da época, que rompia com o estilo românico em voga. Ao resgatar a palavra para o seu romance medieval, Walpole criou um novo conceito para o termo; as temáticas proféticas, fantasmagóricas e macabras voltariam a surgir sob diferentes penas ao longo das décadas seguintes, atingindo o seu ápice em grandes obras do Romantismo como Frankenstein, Drácula, O Médico e o Monstro, nos escritos de Byron e nos contos de Allan Poe.
Horace Walpole também era um tanto excêntrico; fascinado pela Idade Média, ele mantinha um castelo de arquitetura neogótica chamado Strawberry Hill, onde colecionava antigas obras de arte e mantinha a própria imprensa. Em conflito com o pensamento da época, em que a ciência oprimia as velhas crenças espirituais, reuniu timidamente na grande obra de sua vida as agonias de uma geração atormentada pela razão e ansiosa pelo além fantasioso, dando combustível para o Romantismo europeu quando ele ainda não se consolidara.