O presente é uma neblina vasta em Gravidade Zero

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O presente é uma neblina vasta em Gravidade Zero

O livro pretende-se, e de fato é, uma homenagem ao pop star David Bowie

O poeta Alexandre Guarnieri, autor de “Gravidade zero” (Editora Penalux).

O poeta Alexandre Guarnieri mais uma vez surpreende os leitores. Da estreia em livro com Casa de Máquinas (2011), ele retoma sua singular poética em 2015 com  Corpo de festim–  ganhador de um Jabuti – para agora nos brindar com Gravidade Zero. Os três livros vistos numa perspectiva de conjunto da obra até aqui publicada, e em que pese a temática específica de cada um deles muito bem trabalhada, resultam como que numa trilogia poética a representar a grande epopeia da aventura humana dos últimos tempos. Da Casa de máquinas, que aborda a mecanização da vida cotidiana e as pressões sociais, ao interior do corpo humano (de festim) que sofre um tal viver opressivo. Neste último, Gravidade Zero, o homem é lançado no espaço sideral, para além do conhecido, num futuro que se divisa a partir de um presente nebuloso. Há um poema no livro inclusive bem claro quanto a isto: “Nosso futuro entre nebulosas”.

O livro pretende-se, e de fato o é, uma homenagem ao pop star David Bowie – 1947-2016. Importante lembrar como chave de contextualização temática do livro que Bowie foi o criador de personagens que ele próprio interpretava em suas canções, como o Major Tom (astronauta fictício da música Space Oddity, de 1968), que constituiu um emblema da euforia do homem que estava indo à lua, e também Ziggy Stardust, símbolo da sociedade insana que surgia na década de 70, com sexo, drogas, exuberância e irreverência. De fato, o astro inglês era senhor de singular capacidade de somar influências em sua arte (soul music/sintetizadores/parcerias com o Queen etc.).

Depois de salientar a consciência radical do campo “ampliado da poesia por uma racionalidade construtiva que aplica à materialidade – sempre contraditória – dos fenômenos sociais e existenciais convertidos em procedimentos retóricos, a retórica particular do poeta, aberta e descontínua em suas cesuras”, o escritor Nuno Rau, em posfácio à obra, aponta também certas características que sem dúvida podem ser sentidas nesta última obra de Guarnieri: a “diluição do eu lírico”.

“Está tudo tão calmo fora da espaçonave / que ao ego seria concedido / o finalismo do escapista /            não há perigo de colisão / o ego / em gravidade zero / (já tão diluído o eu lírico) / espera a derradeira        dissolução”. Poema “HAL 9000”.

Ou a sensação iminente de um desastre humano caracterizado como a saída de um espaço histórico, uma ruptura, separação da estrela, um corte do “campo gravitacional” que nos mantinha presos a noções centrais. E, singularmente, o diálogo com a tradição que o Major Tom (o de Guarnieri) empreende:

“Será deus, o demônio ou o vazio, / esse anjo de cromo, com o qual, / a minha própria imagem, /             projetada, dança?” (poema “O anjo cromado”).

Mas ler Guarnieri aqui e agora nos traz de volta também à memória, àquela frase que Mário de Andrade escreveu em seu segundo prefácio à Macunaíma: “O presente é uma neblina vasta.” Explicamo-nos quando concordamos com o filósofo italiano Giorgio Agamben ao afirmar que, em nossa época, e “suspenso no vazio entre o velho e o novo, passado e futuro, o homem é lançado no tempo como em algo de estranho, que incessantemente lhe escapa e todavia o arrasta para a frente sem que ele possa jamais encontrar nele o próprio ponto de consistência”.

É, portanto, sobre o tempo contemporâneo que o autor dirige seu telescópio com mais apuro. De um mundo em que estamos paradoxalmente desabrigados na desagregação do presente sem que haja conciliação plenamente possível, figurando a tensão entre a abertura das nossas e de todas as outras forças lançadas, vivemos sua mais alta voltagem, apenas para de lá sermos praticamente ejetados quando tentamos lhe oferecer um relevo. Nele, entretanto, só podemos entrar com o que nos singulariza, descoberto, alias, a posteriori, como na diferença em relação ao que há pouco nos acreditávamos sendo, mais um efeito do contemporâneo, como um resultado do impacto sobre nosso corpo, sobre nosso pensamento, sobre nossa capacidade de sofrê-lo e imaginá-lo, a nos inserir politicamente no jogo do contemporâneo, no qual nossa vida é lançada. E no entanto:

“tudo é queda / tudo se desconecta / tudo busca a reconexão”. (poema “Major tom”)

Ocorre também, e é preciso que se assinale em meio a tal conjuntura, que a vontade de comunicar do artista cria uma maneira de dizer e um dizer sem maneiras, sem garantias, impulso de deslocação, sem ponto de partida fixo. E a poesia contemporânea em sua radicalidade crítica (de que o autor é um dos representantes mais ativos), foge mais ainda aos limites formais e busca seu lugar próprio, sua identidade, o que ela é em si, manifestando-se das maneiras mais imprevistas, dos jeitos mais insólitos e excêntricos. Lança mão da fusão das diversas mídias, incorpora “narratividades”, e acolhe diversos modos discursivos.

E tudo isso sem que se perca de vista o que Jean Luc-Nancy, em Identité, afirma com muita propriedade: que “existe uma zona franca sobre a qual não se exerce nenhuma autoridade, nem mesmo a de minha vontade ou a de meu desejo, uma zona da qual talvez eu não possa dizer nada em termos de ‘identificação’ (caracterizações, atribuições), mas pela qual eu sei que, estando atrás de mim, e a partir de onde eu posso ao menos tentar me identificar ou permitir que os outros ensaiem essa mesma possibilidade”. A poesia contemporânea é uma intervenção – é bom que se repita – política não política, a proporcionar, a todo custo, tocar essa “zona franca” que, anterior aos sentidos, franqueia a escrita a ela mesma; por ser anterior ao pensamento, por ser anterior ao sentido sendo mesmo desde onde o sentido se faz, dessa “zona franca”, não se pode fazer nem um objeto nem um sujeito, em um mundo que, privilegiando as identidades que coincidem consigo mesmas, tende a miná-la, querendo mesmo eliminá-la.

Também já se escreveu que o autor estiliza poeticamente neste livro a aventura da corrida espacial como uma tapeçaria cultural em que vai engastando a pouco e pouco, e pacientemente, a substância de sua poesia. E o faz de maneira a pensarmos juntos sobre essa nossa sensação de que algo que não se encaixa na conformidade do tempo, de que algo permanece desconexo, desarticulado, descompassado. Desse cotidiano, no qual perdemos nossos nomes, identidades, demandas, ofícios, utilidades, contratos, convenções, finalidades… e observe-se a quantas andou a objetividade do autor neste exemplo:

“Como se tudo que agora voa (à solta) / reclamasse um enxerto (adesivo ou aderível) / de velcro ou         ímã magnético para fixar-se / às paredes côncavas de túneis salas passagens / e todas essas “aparições” não fossem, nelas mesmas, / as próprias coisas, mas meras cópias fantasmagóricas,”

E mais adiante, no mesmo poema:

“…(porque há o esforço / para naturalizar ao olho humano / uma realidade suspensa em que tudo /           parece livrar-se ou estar à deriva)”

Neste poema, justamente o que dá título ao livro Gravidade Zero, o autor coloca em prática aquilo que Jean-Luc Nancy chama da “resistência infinita” da literatura, porque a poesia é muito hábil em impotências, força que ela conhece como poucos; desde sua impotência, ela mostra a violência de como os sentidos dos poderes se estabelecem. Bem a ilustrar essa nossa circunstância é o enunciado por Alberto Pucheu em A poesia contemporânea: “se há alguma ruptura no contemporâneo, é para que nos coloquemos no abismo intervalar de sua fissura, jamais na exclusividade dos lados tidos como sólidos de suas margens. Sem esperar o retorno hipotético a uma das margens nem a chegada futura a outra, o contemporâneo, que nos absorve, sabe que, na medida em que a erosão foi grande, na medida em que a erosão é imensa, as margens foram empurradas cada vez mais para longe, flutuam no abismo e qualquer peso sobre elas continuará mantendo a leveza da queda”. Esta a gravidade zero que nos traz Alexandre Guarnieri.

Um último comentário oportuno: quase ao final do seu livro o autor nos deixa entrever um pouco mais de sua profunda consciência do que é a Literatura, no pungente texto em prosa poética “entresstrellas”, no qual recorda a doença de sua avó. A certa altura escreve: “…e se agora ela é trazida de volta, vindo à tona com a mesma força daquela imagem que capturei de esguelha, por acidente, talvez seja para que eu estique um pedaço de mim e o lance ao outro lado do tempo, atravessando essa ponte, essa janela que agora reabre e eu sei que mesmo impossível uma viagem no tempo, na emoção tudo é realizável e me proponho curar em mim mesmo, nessa viagem, aquela imagem, curar da minha avó, dentro de mim, todas as feridas febris, limpá-las, fechá-las”. Este o poeta, esta sua obra.

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(* )Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.

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