O Realismo Romântico e o Idealismo Naturalista

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O Realismo Romântico e o Idealismo Naturalista na construção de uma representação nacional por meio da literatura

Gustave Flaubert.
Gustave Flaubert, um dos principais representantes do Realismo

A palavra “realismo” abarca diversas acepções. Dentro do universo literário, pode se referir à escola do século XIX, que tem por ícone o escritor francês Gustave Flaubert. Este seria o realismo histórico, ou Realismo, que no Brasil foi mais amplamente desenvolvido no estilo naturalista. Também existe o realismo formal, definido por Ian Watt, característico do romance. E o realismo romântico ou realismo dos românticos, comentado pelo crítico Antonio Candido em seu texto Um instrumento de descoberta e interpretação.

Quanto a este último, é de se estranhar, num primeiro momento, que possa haver uma interseção entre o Realismo/Naturalismo e o Romantismo no Brasil, já que os estilos apoiam-se em ideais praticamente opostos. Porém, Candido aproxima os dois movimentos, afirmando que os românticos possuíam sua dose de realismo e os naturalistas, sua dose de idealismo. No século XIX, a literatura brasileira passou a se preocupar fortemente com a questão da identidade nacional. Apesar de ainda se basear nos moldes europeus, os autores buscavam cada vez mais temáticas locais. Os escritores românticos o faziam de maneira a exaltar a beleza e diversidade do país. Já os naturalistas procuravam analisar mais cientificamente os fenômenos sociais de sua terra.

Para tal, os autores oitocentistas empregavam em sua literatura o descritivismo, com paisagens, ambientes e personagens enriquecidos de detalhes, representações de tipos sociais comuns, como o malandro, o boêmio, a donzela, a solteirona, o agregado, etc. Havia uma intensa preocupação com a verossimilhança. De maneira poética ou objetiva, intencionava-se representar a realidade cotidiana, com o máximo de fidelidade possível.

josé de alencar
José de Alencar

 

Um recurso bastante utilizado pelos autores da época é o de criar um contexto de realidade para suas tramas ficcionais. É o que faz José de Alencar no prefácio de Senhora, afirmando que a história lhe foi contada por alguém ciente dos acontecimentos vividos pelos personagens. O escritor seria um mero “editor”, que apenas empresta um pouco de sua imaginação para enfeitar o quadro.

No mesmo romance, é possível observar exemplificações do tom de realismo dos românticos, como nesta passagem em que é descrita a casa de Seixas:

“Havia à Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas reconstruções.

Tinha três janelas de peitoral na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a outra a um gabinete contíguo.

O aspecto da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.

A mobília da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de jacarandá, que já não conservavam o menor vestígio de verniz. O papel da parede de branco passara a amarelo e percebia-se que em alguns pontos já havia sofrido hábeis remendos.

O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente azul tomara a cor de folha seca.

Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de ferro, como o lavatório, e vestida de mosquiteiro verde.

Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio. […]”  (ALENCAR, 1997, p. 41)

A caracterização pormenorizada da casa do protagonista, situada numa rua existente e provavelmente conhecida pelo leitor da época, confere um caráter de realidade à obra, além de revelar a situação financeira precária de Fernando Seixas, que será apresentado logo em seguida.

Portanto, quando se fala em realismo romântico, aponta-se para certos aspectos explorados pelo romantismo brasileiro que podem ser considerados realistas, como a riqueza de descrições, a caricatura social, a tentativa de verossimilhança dos cenários e personagens como um todo.

A isto é possível associar o conceito de realismo formal de Ian Watt. Segundo sua análise em O Realismo e a Forma Romance, o romance, enquanto principal forma literária da era moderna, caracteriza aspectos da nova sociedade, cada vez mais preocupada com as experiências individuais. Em detrimento das verdades universais dos clássicos, valoriza-se a realidade cotidiana. Ou seja, os personagens, cenários e épocas são particularizados, aproximados do universo do leitor comum, público que se amplia largamente com a evolução da imprensa. Os personagens têm nomes, moram em cidades conhecidas, passam por situações do dia a dia. Daí advém a necessidade de descrever cenários e personagens tipicamente brasileiros. Além da representação da vida comum, há o comprometimento com o projeto de criação de uma identidade nacional.

O naturalismo brasileiro também se preocupa com esta questão, porém o faz de maneira diversa. Sua inspiração é nas ciências naturais, seu estilo mais objetivo e pretensamente imparcial, e sua temática de cunho social ou patológico. Conforme aponta Erich Auerbach, em Germinie Lacerteux, a estética realista é misturadora de estilos, pois aborda as classes mais baixas com um caráter de seriedade no tratamento. Se o Realismo flaubertiano não fez escola no Brasil, o Naturalismo de Zola encontrou certo número de seguidores no país. Diversos escritores se basearam nas obras francesas, porém adaptaram-nas ao molde tropical. Um dos maiores expoentes dessa prática seria Aluísio Azevedo.

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Aluísio Azevedo

No seu romance mais conhecido, O Cortiço, verifica-se a influência das ideias naturalistas, como as teorias da raça (a branca seria superior à negra), a animalização da população mais pobre, o darwinismo social. O cortiço é personificado, tendo sua própria rotina, como se pode observar na passagem:

“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava; abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas a janelas alinhadas.

[…]

A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um fartum acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

[…]

Daí a pouco, em volta das bicas era um zum-zum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. […]” (AZEVEDO, 2012, p. 38)

A descrição do espaço físico e dos gestos dos moradores denota uma observação distanciada e atenta, que se pretende ser realista, referencial. São reveladas as condições animalescas em que vivia aquela população de “machos” e “fêmeas”. Todos os sentidos são explorados por meio dos cheiros, das arrumações, dos barulhos, a partir dos quais se depreende o espaço como um todo. Em Ler para Ver, de Flora Süssekind, analisa-se como o naturalismo brasileiro explora as sensações, em especial a visão, para produzir um efeito de real. Efeito ilusório, que, em busca de uma caracterização precisa, nega a pluralidade de interpretações.

É comum considerar que o cortiço de Azevedo é um microcosmo do próprio Brasil. Sob a ótica naturalista, seria um país definido por sua natureza exuberante, que provoca um efeito letárgico sobre os habitantes, onde a mistura de raças é prejudicial ao desenvolvimento intelectual, e a maior parte da população trabalha como burros de carga para o enriquecimento de poucos. Uma concepção pessimista, crua, regada pelas ideias científicas em voga da época, que se propõe como realidade exata.

Apesar do descritivismo bem trabalhado do ambiente e dos personagens, a objetividade naturalista é contradita pela linguagem metafórica, quase poética, do narrador. É o que Araripe Junior chama de “estilo tropical”. Os autores brasileiros desviaram-se da neutralidade dos romances naturalistas europeus, frios e secos, para retratar a realidade local com mais cores e vida. Segundo Araripe, essa “incorreção” de estilo seria um ganho em qualidade para a literatura nacional, já que se trata de uma sociedade jovem, e não em decadência como a europeia.

No trecho em que é descrita a transformação do português Jerônimo, sofrida ao deixar-se influenciar pela terra, incarnada simbolicamente em Rita Baiana, é possível observar os efeitos causados pela natureza dos trópicos no estrangeiro, processo que Araripe classifica como “obnubilação”:

“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisália. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.

E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se.” (AZEVEDO, 2012, p. 92)

O abrasileiramento de Jerônimo transforma-o em preguiçoso, liberal, sensível: ele se afasta da rigidez dos hábitos europeus para se adaptar ao ânimo brasileiro, afetado pelo calor e pela beleza natural do país. O livro não poderia tratar o tema sem criar imagens sensoriais mais coloridas e vibrantes.

Por fim, pode-se concluir que tanto o Romantismo quanto o Naturalismo brasileiro do século XIX estavam comprometidos com o projeto de representação da identidade nacional por meio da literatura, ainda que os moldes continuassem sendo europeus. Visando a verossimilhança, os autores de ambos os estilos investiam na representação da realidade nacional, utilizando-se de descrições de paisagens, tipos sociais e costumes, o que é próprio mesmo do gênero romance. A diferença é que os autores românticos possuem inspiração histórica e linguagem mais poética, enquanto que os autores naturalistas possuem inspiração científica e linguagem mais precisa. Porém, é possível aproximar os dois estilos, conforme Antonio Candido define que existiria um “realismo dos românticos” e um “idealismo dos naturalistas”. Os românticos possuíam seu grau de detalhismo descritivo e os naturalistas o seu grau de ilusão ideológica científica. A preocupação comum é a representação fiel, unívoca, da realidade brasileira.

 

Referências Bibliográficas:

ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.

ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Estilo Tropical. In: SOUZA, Roberto Acizelo de (org.). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó: Argos, 2011, p. 232-35.

AUERBACH, Erich. Germinie Lacerteux. In: ___. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 443-470.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 8 ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

CANDIDO, Antonio. Um instrumento de descoberta e interpretação. In: ___. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 4 ed. São Paulo: Martins, s/d, v.2, p. 109-118.

SÜSSEKIND, Flora. Ler para ver. In: ___. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, p. 91-123.

WATT, Ian. O realismo e a forma romance. In: ___. A ascensão do romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 9-36.

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