A chegada ou o sci-fi elegante de Ted Chiang

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O conto A história da sua vida foi adaptado pelo diretor Denis Villeneuve para o filme A chegada e projeta para o mundo um autor complexo e sutil, com um estilo de ficção científica singular

Filmes inspirados em livros motivam o mercado livreiro a lançar no país autores e obras que, sem a publicidade gerada pela tela grande, talvez nunca fossem traduzidos por aqui. A coletânea História de sua vida e outros contos (Intrínseca) foi lançada no Brasil junto com a estreia do filme A chegada (2016). O drama de ficção científica conta a história de uma professora de linguística capaz de criar pontes de diálogo com seres alienígenas que surgem na Terra misteriosamente, sem alarde ou propósito claro.

A dra. Louise Banks é chamada pelos militares americanos para ouvir gravações do que seria uma espécie de fala de seres denominados “heptápodes” – pois tudo o que os primeiros conseguem ver através de um vidro são criaturas de sete pernas, vários olhos e uma boca indefinida que profere “estrépitos”, gravados pela estudiosa para identificar a mínima semelhança com códigos linguísticos conhecidos. O que seriam pés desenham uma escrita absolutamente sem sentido para o que é familiar aos humanos e sem conexão direta com as vocalizações. Tudo o que os militares querem é descobrir se a presença alienígena é hostil e se eles desejam algo em troca e proíbem a linguista de ensinar inglês ou oferecer pistas de como funciona qualquer tipo de atividade humana, por temor de que qualquer coisa possa ser utilizada como ataque. Resta então utilizar apenas a própria linguagem alienígena para estabelecer contato e identificar os propósitos da visita ao planeta.

História da sua vida e outros contos, Intrínseca

É neste ponto que a escrita de Chiang mostra toda sua elegância. Fãs de ficção científica já estão acostumados a textos que se referem a premissas da Matemática e da Física para a conexão dos acontecimentos do enredo, assim como o desenvolvimento tecnológico é quase sempre um mote para discutir questões filosóficas de como e até onde podemos chegar e que limites ultrapassar em nome do conhecimento. O autor também trabalha com isso, mas estabelece a própria linguagem, que usamos como ponto de partida científico para o conto, e o faz de forma singular. Vários autores, é claro, criaram línguas relativamente estranhas às lógicas conhecidas em narrativas que relatam o encontro entre o que é identificável por nós e civilizações diferentes, sejam terráqueas ou alienígenas. Chiang aprofunda isso passeando pelo território da criação de fonemas e grafemas, ou seja, a maneira como se profere sons ou elabora-se a escrita. Isso tudo sem ser excessivamente didático ou técnico, a ponto de parecer pedante.

Quando uma frase do heptápode B se expandia a um tamanho razoável, o impacto visual era impressionante. Se eu não estivesse tentando decifrá-la, a escrita pareceria um fantástico louva-a-deus desenhando em estilo cursivo, agarrando-se a si próprio e formando uma trama de Escher, cada um levemente diferente em sua posição. E as maiores frases tinham um efeito similar ao de cartazes psicodélicos: às vezes faziam nossos olhos lacrimejarem, ou até nos hipnotizavam.

O autor não se furta a entrar no território da Física.

Gary descreveu um atributo que, no jargão da Física, tinha o nome enganadoramente simples de ‘ação’, que representava a diferença entre a energia cinética e a potencial, integrada no tempo, fosse lá o que isso significasse. Cálculo para nós, elementar para eles.

As descrições científicas, entretanto, servem de paralelo para algo mais instigante na trama do conto: a maneira como a protagonista relaciona os acontecimentos da própria vida e família com as descobertas acerca dos heptápodes e como essas criaturas passam a modificá-la. Tanto livro quanto filme exploram de forma não linear o desenrolar dos acontecimentos. No longa, o roteirista Eric Heisserer oferece ao espectador passagens no tempo com separações mais evidentes para que a narrativa visual não se torne confusa. E faz isso com maestria. Chiang, porém, segue o fluxo de pensamento da protagonista e não se prende em estabelecer uma ordem cronológica para os fatos. Mas isso tem uma razão importante no conto, pois faz com que todo um universo de acontecimentos e ideias caibam em poucas páginas e, é lógico, faz parte do ápice.

Seria realmente possível conhecer o futuro? (…) Gary me disse certa que vez que as leis fundamentais da Física tinham simetria no tempo, que não havia diferença física entre passado e futuro (…) Alguns, podem dizer ‘sim, teoricamente’ (…) A maioria responderia ‘não’, devido ao livre-arbítrio (…) Eu gostava de imaginar a objeção como uma formulação de Borges: considere uma pessoa sentada diante do ‘Livro das Eras’ , uma cronologia que registra todos os eventos, do passado e do futuro.

As discussões sobre espaço-tempo começam a tomar forma, no conto, deslocadas para a construção semântica:

A liberdade não é uma ilusão: ela é perfeitamente real no contexto da consciência sequencial. No contexto da consciência simultânea, a liberdade não é relevante, tampouco a coerção, é simplesmente um contexto diferente, nem mais nem menos válido que o outro.

Ted Chiang se chama, na verdade, Chiang Feng-nan, e é americano de família chinesa. O autor se diz inspirado em Isaac Asimov e a homenagem vez ou outra se evidencia nos contos do escritor de 49 anos, que já ganhou 16 prêmios. A escrita de Chiang é enxuta, mas carrega em cada frase diversas camadas de compreensão, pois faz diversas referências à literatura científica. No conto que deu origem ao filme, utiliza o princípio de menor tempo de Fermat para estabelecer algumas discussões, e nele fica clara a pesquisa aprofundada em linguística e história da linguagem.

Esse é um dos poucos casos em que livro e filme se complementam, no sentido de que fãs do texto de Chiang podem ver nas telas parte do universo criado pelo escritor, sem deturpações absurdas da obra original. Ao contrário, há tanta beleza no filme quanto no conto.

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