Conto: Os dois lados da moeda

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Ilustração Ellen Kiechle - Dois lados da moeda

C A R A

Pela escuridão da noite enevoada a caminhada parecia calma e silenciosa, tranquila. Ao longe pelo caminho não havia nada, já para trás algo chamou a atenção… passos podiam ser ouvidos. Olhos atentos para todos os lados enxergavam apenas um grande nada. Em meio à neblina, coisa alguma podia ser vista.

Sorrateiros e cuidadosos, tais passos se aproximavam de forma preocupante. Frente ao desespero a confusão mental se impôs, não se sabia mais de onde vinha aquele galopar humano!

Alguns pensamentos perturbadores pairavam sobre a mente feminina e frágil daquela caminhante noturna.

– Quem está ai? – Foi a pergunta lógica.

Esperando não ter resposta, por temer o pior, assustou ao ouviu uma voz. Era masculina e confiante, certa e sincera! Respondeu: É seu executor!
Olhos arregalados, disritmia cardíaca, adrenalina por todo corpo… essa foi a reação química. Já a resposta física foi fugir. Impulsionada pelo pânico e, infelizmente, desorientada, a corrida foi descoordenada e barulhenta, assim não ouvia mais seu matador.

Ao parar depois de um longo tempo, já estupefata de canseira, tentou ouvir alguma coisa,  nada lhe veio. O nevoeiro só piorava, o silencio ensurdecia e esfriava ainda mais o suor que se misturava com a água da atmosfera. Não havia casas por aquele caminho apenas frágeis postes com lampiões ardentes.

Teria escapado de seu assassínio?

Um pleck foi ouvido, se virou devagar e muda. Tentava descobrir a origem do som, soltou um berro de pavor. Ali estava ele, de cartola e terno preto, descalço, tranquilo e sereno, infelizmente com tom de verdadeiro no rosto e segurando um bisturi na mão esquerda.

O desgraçado é canhoto! – Se tornou a frase de seu último pensamento.

O sopro da vida se esvaiu no ar desesperado do derradeiro grito que pôde dar por, e para, alguém…

Manchetes no dia seguinte: Jack, o Estripador Ataca Novamente.

 

C O R O A

A vida é injusta! Principalmente com quem é vítima.

Ele vinha calmo e seletivo, andando levemente, revolvendo a nevoa branca e gélida da noite triste sem luar. A via iluminada por lampiões ardidos e fracos dava o tom da inspiração noturna, ele era chamado para algo maior que a própria vida, ao prazer. Aquilo o encaminhava a seguir o som oco de madeira tocando as pedras do calçamento. O salto alto não ajudou a mulher naquele dia.

Uma dama da noite vinha cortando a brancura da neblina e fazendo pequenas sombras com seu corpo.

O desejo o consumia. Ele não reprimia a necessidade descontrolada e doentia. Algo o despertava, talvez o batimento cardíaco que acelerava, talvez a adrenalina que o proporcionava maior agilidade e raciocínio, ou até o calculismo que carregava em suas veias de mercador. Seja lá o que fosse, o fez tirar os sapatos, sua estratégia se iniciara. Bastava apenas um som de passos.

Infelizmente a moça em uma fuga paradoxal seguiu cegamente em direção a ele. O homem surpreso deu passos para trás e abaixou-se, tudo para não topar com a caça.

A frenética correria parou abruptamente segundos depois.

O bisturi escorreu da manga do paletó para a mão, um desejo bestial tomou a criatura masculino. Aproximando-se sorrateiramente a passos curtos, leves e tranquilos estava pronto para dar o bote.

Quanto mais perto chegava, maior era seu prazer… suas pupilas se dilataram e os sentidos se aguçaram.

Aquela noite foi especial para ele, algo a mais o cativou de forma anormal. Tamanha era a satisfação que até conversou com sua vítima, e foi totalmente sincero!

A noite terminou sem sua pureza inicial… perdida nas manchas de sangue, tristes e felizes, espalhadas no calçamento. Por fim, num momento de êxtase paradoxal findou o ato. Quanto mais cortava e estilhaçava o corpo, maior era sua satisfação! Onde coube a tristeza e fim, também coube o prazer e, de certa forma, a felicidade.

 

Quando a vida de alguns justifica a morte de outros… é errado? – Questionava o coitado pseudo-vampiro com ânsia por sangue para saciar sua sede psicológica, e conseguir sentir prazer…

***

Ilustração exclusiva para o conto por Ellen Kiechle.

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