O arco-íris negro: os segredos revelados da trilogia “A morte do demônio”, uma das melhores franquias de horror do cinema

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Com a estreia da série Ash vs Evil Dead, livro da editora Darkside é um guia fundamental para se entender o porquê dos filmes conservarem o sucesso e atraírem uma legião crescente de fãs há 30 anos

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Ao contrário de os meus primos, que no natal de 1986 sonhavam com bicicletas Caloi Barra Forte, bonecos do He-Man ou videogame Atari, eu queria loucamente um videocassete. Eu tinha oito anos e, nesse tempo, minha mãe trabalhava num shopping, cujo segundo andar havia inaugurado algo excepcional: uma videolocadora. Era para lá que eu corria, nas manhãs de sábado, enquanto ela atendia as clientes um piso abaixo. Ficava feito uma sentinela, estacionado defronte à vitrine, contemplando as capas da VHS e os pôsteres, imaginando o quão sensacional seriam aquelas histórias.

Eu era uma criança fascinada por filmes, em especial os de terror. Para desespero da minha mãe, passava as madrugadas acordado, esperando a atração da Sessão Coruja, onde entravam os filmes impróprios para o horário familiar. Foi lá que assisti alguns dos meus títulos preferidos no gênero até hoje: O exorcista, O enigma do outro mundo, O bebê de Rosemary, Pague para entrar, reze para sair, Scanners, entre outros.

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Pôster de Uma noite alucinante

Teve também Uma noite alucinante (Evil Dead 2), e esse mexeu com o menino que eu era. Ali estava o ingresso para uma montanha russa de loucura e sangue, gore com doses de humor pastelão, um terror gráfico, inventivo e eletrizante. Explodiu a minha cabeça. Passei a perseguir a programação da tevê, ansioso por uma reprise. Lembro-me que o assisti mais uma vez na mesma TV Globo. Mas a circunstância agora era diferente.

No natal de 1986, eu ganhei um videocassete. E foi meu presente mais marcante até hoje. A cena continua vívida na minha memória. Primeiro, minha madrinha me deu uma VHS virgem e disse que era para quando eu ganhasse meu videocassete. Era uma pista que, ingenuamente, não decifrei. Então, chegou a hora dos presentes e minha mãe me avisou que o meu estava escondido. Vasculhei toda a casa e o encontrei embaixo do sofá que ainda resiste. Chorei muito. Havia um novo mundo a ser explorado. Eu poderia alugar filmes, eu poderia gravar meus filmes prediletos.

Alguns dias depois, um tio me levou a uma videolocadora em que era sócio. Chegando, corri para a prateleira de horror. Eram tantos filmes inéditos disponíveis, tanta vontade de assisti-los! Eu parecia João diante da casa feita de doces. Olhava as capas, lia as sinopses e erguia uma pilha ao lado das minhas pernas. Foi então que me deparei com uma em especial. A imagem era a de um mulher semienterrada sendo sufocada por uma mão que brotava da terra. O título era Evil Dead: A morte do demônio. Quando li a sinopse, minha cabeça explodiu pela segunda vez.

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VHS de Evil Dead, lançada no Brasil em 1985, pela extinta Look Video

Aquele filme que eu tanto gostava, Uma noite alucinante, era uma continuação (!). Na verdade, uma espécie de refilmagem, com mudanças pontuais no roteiro e notáveis na qualidade técnica do tal A morte do demônio. O diretor e o protagonista eram os mesmos, contudo o primeiro filme tinha um aspecto mais caseiro, mais tosco, mais cru, sem traço qualquer de humor. Naquela tarde na videolocadora, eu deixei para trás a pilha de VHSs e aluguei apenas Evil Dead. Com ela, estreei meu videocassete. Lembro-me de assisti-la três vezes seguidas, voltando em algumas partes.

Eram garotos, que como eu, amavam cinema e muito sangue

Todas essas recordações me voltaram cristalinas, após avançar as primeiras páginas de Evil Dead: A morte do demônio [Arquivos mortos], do crítico de cinema norte-americano Bill Warren (tradução Dalton Caldas). É como se eu apertasse a tecla rewind do meu antigo videocassete (ainda tenho um videocassete, mas não aquele) e pudesse me reconectar à pulsão de sentimentos que me conduzia naquela época de menino, fascinado por descobrir que o filme que tanto amava era apenas uma parte de um projeto muito maior.

A publicação da editora Darkside, com um esmero gráfico impressionante para o mercado brasileiro, exponencia esse efeito, dissecando não apenas o processo de filmagem do longa, mas o que o antecedeu e as impressões de público e de crítica que o tornaram um clássico instantâneo do horror e, mais à frente, uma franquia com elementos integrados à cultura pop. É um livro com um apelo irresistível para os fãs, fartamente recheado com fotos dos bastidores das gravações, storyboards e os roteiros comentados dos filmes que compõem a trilogia original, que vale também pelo relato de como um grupo de jovens amigos, apaixonados por cinema, criaram um filme icônico com aquela máxima da “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”.

https://www.youtube.com/watch?v=72nlQp9xe5o

Evil Dead se resume a três caras: o diretor Sam Raimi, o produtor Rob Tapert e o ator Bruce Campbell. Na verdade, o mais correto seria dizer quatro caras, porém Scott Spiegel, que assina com Raimi os roteiros dos filmes 1 e 2, não participou do terceiro. Ocorre que tudo começou com Raimi, Spiegel e Campbell, que se conheceram no colégio e, com uma câmera Super-8 faziam filmes de brincadeira, sem qualquer recurso, apenas tomados pela vontade de produzir algo, representar em vídeo de alguma maneira a paixão e o fascínio pelo cinema.

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Os amigos Tapert, Raimi e Campbell

Nesse tempo está a explicação do porquê, depois de uma estreia feroz, considerada uma das obras mais impactantes do gênero, as continuações abusaram da paródia e do humor físico. Os primeiros curtas metragens de Raimi e cia. tinham uma influência direta dos Três Patetas. Como destaca Warren, no livro, “em A morte do demônio os Patetas deixaram sua marca. As tomadas sangrando na parede e a lâmpada que se enche de sangue são duplicatas mais gore de tomadas semelhantes envolvendo água em um filme dos comediantes”.

A comicidade e a irreverência norteavam suas produções baratas, embora as escolhas do temas eram grandiloquentes, maiores que a capacidade de captura filmográfica, do elenco amador e do figurino composto por roupas emprestadas. Um desses filmes primários, por exemplo, era uma versão anedótica da morte do célebre sindicalista Jimmy Hoffa, num tipo de comédia de erros. Era tão ruim que mereceu uma continuação.

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Bastidores de gravação de Evil Dead 2: Raimi, Campbell possuído e Tapert

Então Raimi chegou à faculdade de Cinema de Michigan e lá conheceu Tapert, que era colega de quarto do seu irmão mais velho. Tapert fazia Medicina, no entanto o entusiasmo de Raimi pela sétima arte o contaminou e começaram a gravar, com uma produção um pouco melhor. Spiegel e Campbell, que seguia a carreira de ator no teatro, pouco a pouco foram se reintegrando a essa nova fase. Chegaram os anos 1970 e os filmes de terror de baixo orçamento faziam sucesso e atraiam cada vez mais público. O massacre da serra elétrica, A noite dos mortos vivos, Aniversário macabro, Quadrilha de sádicos. Um dia, saindo da sessão de Halloween, clássico de John Carpenter, Tapert virou-se para Raimi e perguntou: “Sam, será que você consegue fazer um filme tão bom quanto esse?”. Assim nascia a ideia de Evil Dead, a partir de um desafio.

“A nossa preocupação era fazer um filme de terror com T maiúsculo”, declara Campbell, que ficou com o papel do protagonista, Ash. Isso era o mais fácil. O pensamento era o mesmo grandioso: chegar aos cinemas mundiais, ainda que não tivessem grana para contratar atores. Tapert foi correr atrás de empréstimos bancários e Raimi e Spiegel ficaram responsável pelo roteiro de Book of the dead, o título inicial, que fazia referência ao Necronomicon, o livro dos mortos. Acabaram com um orçamento de 85 mil dólares, um roteiro de 60 páginas, um elenco improvisado e uma longa viagem ao gélido Tennessee, onde ocorreu a maior parte das gravações. Seria um terror de cabana, pois era mais barato e fácil de ser feito. Hoje esse é um subgênero replicado pelos grandes estúdios.

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Pôster de Evil Dead: A morte do demônio

A parte reservada às filmagens do primeiro Evil Dead é a melhor. Warren revela dezenas de curiosidades sobre os bastidores, o uso da criatividade em contrapartida à dificuldade, como foram criados momentos icônicos a partir de técnicas improvisadas, a exemplo da maneira de filmar a partir da perspectiva da aparição. Um ano depois, o material bruto estava capturado, daí se iniciavam os processos de edição, de sonorização e as inserções de stop-motion, que contaram com muita persistência, mais empréstimos e o envolvimento de profissionais seduzidos pela determinação do trio, que inclui até um dos irmãos Coen, que depois trabalhariam com a Renaissance Pictures, produtora fundada por Raimi, Tapert e Campbell.

O próximo passo era o mais desafiador: vender o filme. Depois de muitas exibições e negativas, eles tiraram a sorte grande com o interesse do lendário distribuidor Irvin Shapiro, que conhecia e gostava de filmes de terror. A ideia de mudar o título Book of the dead, aliás, foi dele. Em 1982, Evil Dead aportava no festival de Cannes. E a história da morte do demônio ganhava vida.

Sob as graças do rei

Shapiro era amigo de ninguém menos que Stephen King, que também estava Cannes, promovendo a antologia Creepshow. O escritor norte-americano assistiu o filme e ficou estarrecido. O impacto foi tamanho que, ao voltar aos Estados Unidos, escreveu uma crítica sobre Evil Dead para a revista Twilight Zone, que traz os seguintes trechos: “O que Raimi alcança em ‘A morte do demônio’ é um arco-íris negro de terror (…) Raimi tem tanto talento que alguém incompetente pode cogitar em comer as unhas dele para ver se traz poderes”.

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Necronomicon, o livro dos mortos

Como observa Warren, “a crítica de King atiçou a Fangoria (conceituada revista do gênero horror), e a Fangoria atiçou os fãs de filme de terror. Não só o interesse em A morte do demônio cresceu, mas de repente Bruce Campbell, Sam Raimi e Rob Tapert viraram nomes”.

As coisas para os três amigos, pela primeira vez, começaram a dar certo. O longa partiu do boca a boca, do circuito pequeno, para uma turnê de sucesso pela Europa e depois pelos Estados Unidos, com críticas, em grande maioria, positivas. Por fim, vieram os prêmios e o estúdio já pensava na continuação, no entanto Raimi tinha outros planos para sua carreira. Um filme cômico sobre crime, com roteiro dos Coen, que acabou não dando certo.

De fato, a continuação só viria três anos depois. E novamente a mão de King foi fundamental para o sucesso. Ao saber que Raimi estava com dificuldade de financiar A morte do demônio 2, o escritor tomou o telefone e ligou para Dino de Laurentiis, famoso produtor e magnata do cinema que trabalhou com Fellini. Laurentiis não era muito afeito às produções de horror, mas apostou naquele grupo de jovens com um sucesso de baixo orçamento, embora não tanto para que a ideia de Raimi de a história se passar no período medieval fosse possível. O jeito era voltar ao filme de cabana, do protagonista que enfrenta sozinho as forças do mal, pois era o que o dinheiro permitia. Spiegel foi convocado a coescrever o roteiro.

Evil Dead 2 (Uma noite alucinante, título no Brasil) é um tipo de paródia do primeiro filme. A história é basicamente a mesma, com o diferencial de uma produção e componentes técnicos melhores, e um aspecto cômico que salta aos olhos (literalmente). Há desde piadas sutis ao humor pastelão. A influência dos Três Patetas volta com tudo, banhada num caldo encorpado de sangue e tripas. Um filme que reinventa o terror gore, splatter.

Como fã, prefiro esse ao primeiro. A crítica, no entanto, como atesta Warren, ficou dividida, ainda que muito mais favorável à continuação. A revista Spin, inclusive, elegeu Uma noite alucinante o melhor filme daquele ano, entre 100 selecionados. O livro de Warren remonta o período de gravação, como Raimi foi tornando o roteiro melhor (e se tornando um diretor melhor), inserindo ideias ousadas durante as filmagens e, sobretudo, como o companheirismo entre os envolvidos outra vez se sobressaiu às dificuldades e ao pouco recurso. Uma curiosidade bacana: Greg Nicotero, hoje cultuado pelo trabalho na série The Walking Dead, foi assistente de efeitos especiais em Uma noite alucinante.

O demônio nunca morre

Mas o primeiro grande sucesso de Raimi não seria na franquia Evil Dead. Darkman – Vingança sem rosto, um filme, de certo modo bizarro, sobre um super-herói (ou um anti-herói), foi o longa que definitivamente decretou seu nome como um dos promissores diretores de Hollywood. Anos mais tarde, seria esta uma das razões pela qual Raimi foi escolhido para comandar a trilogia Homem-aranha.

O terceiro filme foi o seguinte e retomou a ideia do roteiro do segundo de se passar no período medieval. No fim de Uma noite alucinante (SPOILER!!!), Ash é sugado por um túnel do tempo e vai parar no ano de 1300 A. C., cercado por cavaleiros em armadura. Army of darkness, como foi chamado, segue a partir daí e, igualmente, abusa do humor e dos efeitos especiais. Desta vez, é Ivan, irmão de Raimi, que coassina o roteiro.

O problema é que o terror foi praticamente deixado de fora. O terceiro filme está mais para uma aventura que para um filme de horror. Desse modo, os fãs (e eu me incluo nesse time) ficaram decepcionados, irritados até com o tom bobalhão dado ao protagonista Ash. Apesar de já inseridos na cultura pop, os elementos dos filmes anteriores simplesmente desapareceram, sobrando um punhado de gags e um romance canastrão em meio a uma batalha de esqueletos com uma pegada cartunesca. Como escreve Warren, o desapontamento marcou o longa: “As críticas em geral foram favoráveis, embora os críticos, assim como os fãs incondicionais, melancolicamente sentiram falta da violência exagerada dos dois primeiros filmes”.

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Pôster de Army of darkness

Army of darkness fechou um ciclo cinematográfico. Depois vieram alguns gibis, um jogo de videogame e até um musical. Contudo, tal qual afirmou Tapert anos mais tarde, “jamais haverá um quarto Evil Dead, porque eles (os produtores) não ganharam dinheiro”. E finaliza: “(…) nossas melhores experiências foram trabalhar juntos naqueles projetos, e acho que vamos todos trabalhar juntos novamente algum dia”.

Em ambos os casos, Tapert estava meio certo. Não houve um Evil Dead 4, porém, em 2013, ocorreu uma refilmagem de sucesso do primeiro longa. A direção ficou a cargo do uruguaio Fede Alvarez e, embora Ash/Campbell tenha ficado de fora, os três amigos trabalharam juntos na produção do filme, inclusive com a participação ativa de Raimi no roteiro. Essa, de fato, seria uma espécie de prévia para o lançamento, em novembro passado, da série Ash vs Evil Dead, produzida pelo canal Starz, que reúne Raimi, Tapert e Campbell nas funções que ocuparam na trilogia original.

https://www.youtube.com/watch?v=unnLg1TPCYM

A história se passa exatamente 30 anos depois do último filme, com um Ash gordo, hedonista e vivendo num trailer. Depois de uma noite de sexo e drogas, ele resolve ler um trecho do Necronomicon (o famoso livro dos mortos) com o intuito de recitar palavras estrangeiras (?!) para uma moça. O resultado é um resgate imediato da combinação perfeita entre humor e terror, que torna Uma noite alucinante um filme cultuado e inigualável. Ainda não há previsão para ser exibida no Brasil, mas a primeira temporada está no ar nos Estados Unidos, e a crítica e os fãs adoraram.

Pelo visto, a morte do demônio não vai ocorrer tão cedo. Amém!

* Nota do autor: Lá pelas últimas páginas de Evil Dead [Arquivos mortos], os editores brasileiros informam que Uma noite alucinante chegou aos cinemas brasileiros em 1988, três anos depois de A morte do demônio ser lançado em VHS. Isso, obviamente, vai de encontro ao meu relato inicial sobre como vi o filme, porém não me importo. É desta forma que me lembro; é a que está registrada na memória da minha infância, e continuará sendo sempre assim para mim.

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