Esse ainda é um tema polêmico. Afinal, as histórias em quadrinhos devem ser consideradas literatura? O trabalho com elas nas escolas é válido? A edição nº 51 da revista Conhecimento Prático Literatura é especialmente dedicada a esse assunto. Tomo suas matérias como base para o texto de hoje.
Ainda é notável o preconceito em relação à leitura de HQ. Tendemos a relacionar as revistas em quadrinhos a um entretenimento infantil, válido apenas como etapa de preparação para leituras mais profundas, como romances, literatura “de verdade”. Os adultos que curtem HQ são logo imaginados como nerds imaturos, que não têm vida social e vivem em eventos de RPG e lojas de revistinhas, à la The Big Bang Theory. Não quero entrar no mérito de considerar ou não HQ como um gênero literário, afinal, essa questão depende do ponto de vista classificatório que se adota (há quem considere como literatura, como subliteratura, ou mesmo como um gênero híbrido). O que pretendo apontar aqui é como a leitura de histórias em quadrinhos pode ir além da diversão rasa, possuindo uma história e um valor como instrumento de leitura individual e educacional.
Em primeiro lugar, existem diversos tipos de HQ. Desde as famosas de super-heróis (Batman, Superman, Quarteto Fantástico), passando pelas infantis (Turma da Mônica, O Menino Maluquinho, Mickey, Pato Donald), até as adultas (Sandman) e os mangás (Naruto). Em todas elas, encontramos personagens em conflito, que vivenciam experiências, aventuras, convivem com o bem e o mal, problemas e questões humanas. Daí, já percebemos seu valor ficcional. Crianças e adultos podem aprender através das experiências ficcionais, o que leva involuntariamente a uma associação e assimilação com a vida real. Hoje existe mesmo um estilo de HQ chamado poético-filosófico, cujo objetivo é tratar de temas existenciais e promover uma reflexão crítica.
Em meados da década de 50, foi instaurado o Comics Code Authority, uma espécie de censura às histórias em quadrinhos publicadas, baseado nas análises do psiquiatra Wertham, que concluiu, equivocadamente, que as causas da delinquência juvenil estavam na leitura de HQ, já que os jovens delinquentes eram leitores do gênero. Ora, isso me remete a duas outras questões. Primeiro, a uma discussão atual sobre a influência de jogos violentos em adolescentes e crianças. Ok, e os jovens que liam HQ ou que jogam videogames violentos e levam uma vida normal, correta? E os jovens que não liam HQ ou que não jogam videogames violentos e são psicopatas, assassinos, etc.? Segundo, também relaciono esse Comics Code à censura à arte de uma maneira geral. Quantos escritores de vanguarda não foram altamente condenados em sua época? Cito Oscar Wilde: “Não existe isto de livros morais ou imorais. Livros são coisas bem escritas ou mal escritas. E só”. Podemos considerar o mesmo em relação às HQ. São bem feitas ou mal feitas. E só.
Quanto à situação no ambiente acadêmico, apesar do aumento do número de pesquisas e estudos envolvendo o tema, ainda há um preconceito forte com o gênero. O ensino brasileiro, infelizmente, se mantém muito tradicional e tecnicista. A literatura, como as outras matérias, é trabalhada objetivamente. Os alunos decoram estilos de época, autores e enredos de obras, o que tira toda essência da literatura em si. As tirinhas presentes nos livros didáticos normalmente são pretextos para exercícios gramaticais ou enfeite de página, mero momento de descontração. Isso também acontece com poesia e outros gêneros, o que é uma lástima, um desperdício de bom material.
Experiências de professores em classes de alfabetização, de Ensino Fundamental e de Ensino Médio apontam como pode ser interessante trabalhar as HQ numa perspectiva crítico-sensibilizadora. Para os alunos que estão aprendendo a ler, os textos curtos e a associação com as imagens ajudam no processo. Para os mais crescidos, que, de modo geral, ainda não adquiriram a leitura como um hábito, o mesmo acontece. É um exercício de aprender sem se dar conta, se divertindo. Fora que vivemos numa época em que o meio visual predomina e a imagem pode ser um atrativo para essa nova geração. O hibridismo imagem-texto é algo bastante enriquecedor no gênero HQ.
Não estou absolutamente defendendo que devemos ignorar a literatura, em seu sentido clássico, e adotar, daqui em diante, apenas o gênero maravilhoso, completo, fantástico das HQ. As obras clássicas continuam tendo, e sempre terão, o seu valor, universal e atemporal. Os leitores de HQ não precisam abandonar o gênero, porém, podem (e devem) se aventurar em outras leituras, clássicas, contemporâneas, de romances, contos, poemas, etc. Assim como os universitários, professores e leitores em geral devem estar abertos a novas (e velhas) modalidades de leitura, sem preconceitos. Vamos parar com essa mania de achar que a diversão não tem seu mérito. Diversão não é perda de tempo e pensamento crítico não é um esforço maçante. Somos seres humanos e, em tudo que fazemos, estamos, de alguma forma, pensando e sentindo, constantemente. Por que com a leitura de HQ seria diferente?
Referência Bibliográfica:
Revista Conhecimento Prático Literatura (nº 51) – Editora Escala