Línguas criadas: transpondo as páginas de livros

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Entre os mais conhecidos (exemplos de línguas criadas para a ficção) estão o élfico de  O Senhor dos Anéis, o Klingon de Jornada nas Estrelas, o Na’vi do filme Avatar e o dothraki de Crônicas de Fogo e Gelo

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A língua é definida como a capacidade humana de entender e utilizar sinais arbitrários, seja através da voz, sons, gestos ou símbolos escritos; como forma de comunicação. Há mais de 7000 idiomas distintos em todo planeta, de acordo com dados da Ethnologue, com quase 60 % do total sendo originários da Ásia. O português, sendo de origem latina, encontra-se na família das Indo-Européias e estas constituem cerca de 6% de todas as línguas faladas no mundo. Vale lembrar que estes dados referem-se a idiomas como um todo, e cada idioma tem seus regionalismos e dialetos, então dá para se ter uma noção do tamanho da complexidade do estado atual da comunicação humana.

A evolução das línguas, desde suas primeiras manifestações, deu-se de maneira caótica e acompanhando tendências e costumes de cada época. Palavras extintas e encurtadas, exceções criadas, neologismos e estruturas inteiras de escrita foram lugar-comum em todas as línguas, e ocorreram em diferentes níveis para cada uma delas. É extremamente difícil achar um padrão de variação e organização entre todas, dado que os fatores que a alteram são externos e dependem de cada cultura que a utiliza.

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Desafio do dia: encaixar 7000 línguas na mesma imagem.

A língua portuguesa, por exemplo, teve sua origem no noroeste da península Ibérica evoluindo do latim trazido por colonizadores romanos no séc. III. O português arcaico desenvolveu-se no séc. V após invasões “bárbaras” e a consequente queda do império romano. Os dialetos dos povos conquistadores aglomeraram-se aos poucos ao latim já falado nas regiões e formaram o galego-português. Após a formalização do reino de Portugal houve uma dissociação entre o português, agora considerado língua oficial, e o galego, que passou a receber influências das línguas leonesa e castelhana. As diferenças tornaram-se bem claras com o tempo (fonte do quadro: Wikipedia):

Galego-português Português Galego
Pois ante vós estou aqui,
senhor deste meu coraçom,
por Deus, teede por razom,
por quanto mal por vós sofri,
de vos querer de mim doer
ou de me leixardes morrer.
Pois ante vós estou aqui,
senhor deste meu coração,
por Deus, tende por razão,
por quanto mal por vós sofri,
de vos querer de mim doer
ou de me deixardes morrer.
Pois ante vós estou aquí,
señor deste meu corazón,
por Deus, tede por razón,
por canto mal por vós sufrín,
de vos querer de min doer
ou de me deixardes morrer.

Durante o período das Grandes Navegações o reino de Portugal se expandiu para além das fronteiras europeias, estendendo seus domínios à África e parte da América do Sul, junto com a Espanha. O português encontrou com novos idiomas e dialetos, e tomou novas formas, evoluindo ao português falado no Brasil e em alguns países da África, como a Angola. Abaixo está um gráfico ilustrativo da evolução da língua portuguesa feito pela jornalista e escritora Solange Ferreira Pinto, desde sua origem do latim até os dias atuais.

O português da sua origem ao início das Grandes Navegações. (Fonte)
A evolução do português no Brasil. (Fonte)

Não bastasse a já complexa forma natural dos idiomas humanos e o quão difícil é seu estudo, linguistas inventam idiomas próprios e teorizam suas evoluções. Isto começou por volta do séc. 19,  com a criação de idiomas como o Solresol, que utiliza as notas musicais como base gramatical, o Volapuk, a primeira tentativa de se criar uma língua internacional, e o Esperanto, que é uma das mais conhecidas até hoje.

Há inúmeras línguas criadas, e a maior parte delas é uma tentativa de criar uma única língua para todos os povos, uma simplificação de línguas já existentes ou apenas um modelo para se estudar o próprio fenômeno linguístico. No entanto, algumas delas foram criadas junto com mundos fantásticos a fim de enriquecer o cenário de um livro. Afinal, seria um tanto estranho ver um ser de outro planeta falando inglês.

Há exemplos muito bem estabelecidos no meio pop, e novos que se firmam cada vez mais. Entre os mais conhecidos estão o élfico de  O Senhor dos Anéis, o Klingon de Jornada nas Estrelas, o Na’vi do filme Avatar e o dothraki de Crônicas de Fogo e Gelo. O propósito maior da criação desses idiomas é diferenciar o universo de cada autor, dando a eles vida própria e características únicas. É um processo tortuoso e que precisa ser lapidado a detalhes mínimos. Uma língua é composta de regras, exceções, construções e desconstruções; e seu inventor precisa ter tudo isso em mente.

A torre de Babel dos mundos fantásticos. – Arte por Syed Rashad Imam Tanmoy (Fonte)

Algumas línguas criadas começaram apenas com o vocabulário, como o Na’vi, por exemplo, que teve seus primeiros rascunhos feitos por James Cameron no estágio de pré-produção do filme e mais tarde foi entregue ao linguista Paul Frommer, que desenvolveu as regras do idioma Na’vi. Durante as filmagens ele precisou ensinar aos atores a pronúncia correta de frases e palavras. O mesmo ocorreu com o dothraki, que nos livros de Martin continha apenas algumas palavras e frases formuladas. Quando a adaptação para a série de TV Game of Thrones começou, os produtores da série contrataram o linguista David J. Peterson para o desenvolvimento e formalização do idioma.

Outras, como o élfico de Tolkien, foram desde seu início desenvolvidas e testadas para ter a complexidade e fluidez de uma língua real. O senhor dos hobbits era um acadêmico e linguista, e trabalhar no élfico era um hobby a que se dedicou ao longo de toda vida, sempre procurando aperfeiçoá-lo. O resultado foi uma das construções linguísticas mais complexas de que se tem notícia em mundos inventados, e o élfico é um dos grandes responsáveis por tornar Tolkien um dos grandes mestres da fantasia de toda história.

Assim também ocorreu com o Klingon de Jornada nas Estrelas, criado pelo linguista Marc Okrand. Originalmente imaginado para algumas cenas do filme Star Trek III,o idioma tomou uma dimensão não imaginada pelos produtores e caiu no gosto dos fãs. A língua falada soava diferente de tudo que havia sido visto até então, literalmente alien. Então o criador desenvolveu uma linguagem inteira, e ela continua em expansão até hoje.

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Élfico, bonito de ver, difícil de aprender.

O crescimento exponencial dos idiomas construídos deve-se predominantemente aos fãs dedicados que, assim como os criadores da obra, fazem do estudo da língua um hobby e propõem novas estruturas e contribuem para sua evolução. Isso foi elevado ainda mais pelo fenômeno da Internet, onde fóruns de fãs e sites especializados permitem espaço para discussão e encontros. Isto então torna-se semelhante ao processo de mutação que as línguas comuns sofrem ao longo da história humana.

As línguas construídas atuam quase como um experimento científico de um fenômeno que ocorre naturalmente. Seu estudo é importante para entender como os meios de comunicação da humanidade surgiram, evoluíram e como tomarão formas futuras.

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Links interessantes

Vídeo que incentivou a matéria

Conlangs, línguas construídas em tempos de internet

A história do Klingon (em inglês)

Como falar élfico em passos simples (em inglês)

Dicionários élficos

Instituto de Linguagem Klingon

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