Série Postais – Napoleon e Monsieur vão passear // Remetente: Paulino Júnior, Destinatário: Moema Vilela

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Na série ‘Postais’, um autor envia um cartão a um outro autor, em cuja imagem este terá de se inspirar para a escrita de um conto. ‘Napoleon e Monsieur vão passear’, de Moema Vilela, foi baseado na fotografia de Paulino Júnior.

Postais Paulino

 

Napoleon e Monsieur vão passear

 

Napoleon não era um cachorro igual aos outros. Em vez do verão, preferia o apartamento. Ao parque ensolarado dos latidos, das crianças, da correria na grama, olha… prefere até fazer declaração de imposto de renda. Era o que ele dizia, exagerado, com aqueles olhos pedintes emprestados da Lassie.

Monsieur apontava a meteorologia no celular: chovendo mais que em poema de Prévert, nem assim? Nada. In loveavec minha almofada, Napoleon dizia, na língua sofisticada dos cães.

Estragar a horta da vovó! Perfumar o pilar do estacionamento, ao menos, vamos Napo! Monsieur o provocava, lembrando de sua condição, seus antepassados impulsivos, insinuava que Napoleon não era bem-nascido. Mas Napoleon era tão bem-nascido que nunca tinha dito uma palavra contra Monsieur e o suportava com dignidade, uma sobrancelha levantada. Nunca uma palavra sobre os ascendentes de Monsieur, que tinham inventado a obsolescência programada e a escravidão, bombardeado Hiroshima e hospitais com crianças.

Melhor empurrar a bola vermelha contra a parede com o nariz. A bola vermelha respondia com as leis do carma – devolvia braveza à braveza, delicadeza à delicadeza, indiferença com a mais impecável impassibilidade. De sua caminha, Napo olhava para ela e ela olhava para ele, sem nunca, jamais, jamé, falhar a retribuição. Napo amava a todos sem distinção, begônia, bola, Monsieur e parede, objetos do mesmo interesse e da mesma alegria. Monsieur pensava nisso e se enchia de água salgada no pensamento. Afagava a cabecinha do cão e se martirizava pelas piadas de mau gosto, as desatenções no momento em que Napo chamava para brincar, mas Monsieur preferia ver mais um vídeo de cangurus lutando boxe no YouTube.

Monsieur se questionava se aquele jeito de viver era o melhor para Napoleon. Já fazia quase um ano que eles não saíam de casa.

Monsieur entrava em grupos de discussão de pais de cachorros que gostavam de ficar em casa, e lia artigos, e até se dignava a responder, no chuveiro, a estultices de que o campo era a vocação da natureza dos cães. Ele mesmo, gênero homem feito, talvez deveria gostar de bailes e boates, dinheiro, esportes, vestidos curtos, cruzeiros transatlânticos? Não. Cada vez mais ele queria ficar em casa, para ter mais tempo para visitar o mundo na internet. Em 2009, o mundo era grande e a internet ia mais rápido. Em 2009, Monsieur aprendeu a montar um website e começou a traduzir.

Eles compravam tudo online. Tomavam muitos banhos. Toda tarde, Napo mergulhava, saltava, escorregava, e Monsieur depois limpava, punha de volta o tapete e devolvia a secura ao piso. Monsieur se banhava depois, tinha encomendado um suporte para tela que podia ser afixado no azulejo, então ficava quase uma hora na banheira assistindo a documentários de guerra. Era o justo pagamento por uma tarde sofrida – ele não sabia dos males o pior, se traduzir manual técnico ou poesia. Nos finais de semana, Napo fazia olimpíada nos sofás. Monsieur inventava jogos, imitava pratos elaborados das mais longínquas culinárias, jogava pôquer on-line. De noite, perfumado de shampoo e sabonete, cabelo desgrenhado, lia em voz alta para Napo, que esgotado das brincadeiras do dia, aceitava a pasmaceira. Ele se enfiava no colo de Monsieur e ouvia.

Literatura norte-americana.

Na prática, homem e cão preferiam os cômodos da casa, mas amavam a natureza na poesia do Novo Mundo. Cânions, pântanos, lagos, sapos, cigarras cantando, montanhas nevadas e esmeralda nas colinas, famílias de peixes subindo o rio. O pólen em cima da flor que ninguém viu, só o sol, lá no Alasca. Monsieur às vezes buscava os personagens cães nos seus e-books piratas, e entrava na mente de Flush,e declamava os ganidos de Percy, mas Napoleon, ao contrário de um homem, não precisava se identificar com o personagem para entender a graça da história. Ele ouvia igual, fosse o narrador cachorro, homem ou mulher, gato, vírus, imperador.

Ou Nick. Depois de Hemingway, Napo nunca mais usou roupa de inverno e exigiu um nome mais varonil. Agora ele era Leon. Selvagem. Monsieur não demorou para entender as recusas de Napoleon em acompanhá-lo, o latido de negação cada vez que era chamado pelo apelido antigo, ‘Napo’. Exultante com a perícia de sua interpretação, inspirado pelo amigo tão disposto a se reinventar, Monsieur fez também uma mudança.Acrescentou ao cartão de visitas virtual, depois de Tradutor Francês-Inglês, o traço: – e canino.

Era Hemingway que eles reliam, quando a carta chegou.
“Venha ao meu aniversário. 15:30 p.m., Aquaboulevard II”.
A carta colorida, impressa em gráfica, terminava com uma voadora de golpe final. Em caligrafia infantil, cada letra de um tamanho, vinha escrito:
“PoRFAvOR”.

Monsieur fez os cálculos de como tinha se enfiado nesse enredo. No inverno,quando foi colocar o lixo para fora, encontrou a vizinha sem cabelos. Fazia tempo que eles não se viam. E como a memória congela as pessoas, a memória pode manter uma mãe que se despede jovem para sempre com os cabelos ruivos, Monsieur não escondeu a cara de surpresa. A vizinha também não, que Monsieur antes era castanho e agora todo branco. Ela contou que estava doente e não era pouco. Monsieur tinha aprendido na internet que não se deve dizer a pacientes com doença terminal que eles iam vencê-la, perguntar se eles estavam bem na hora em que estavam mal, comentar se eles tinham tentado aquele novo tratamento. Tudo isso não era óbvio para quem não usava a internet tão bem quanto Monsieur, então a vizinha e ele, nos breves intervalos de se livrar do lixo e de uma ou outra reunião de condomínio, ele e a vizinha ficaram simpáticos um ao outro. E a filha da vizinha, Marguerite, atraída pelo latido de Napoleon atrás da porta, um dia até entrou correndo no apartamento junto com Monsieur, conseguindo ser convidada para lanchar um biscoito.

Agora, isso. A carta. O convite. As obrigações de um cavalheiro. Era aniversário de Marguerite, e não era no salão de festas.

Nervoso, Monsieur tirou o computador do descanso de tela, apelou para os vídeos mais apelativos, os nocautes mais famosos, logo estava lá, vendo Woody Allen lutando boxe com um canguru em 1960. Leon, todo delicado, colocou o focinho entre Monsieur e o teclado: noblesseoblige, precisamos ir.

Merde, quantos países, quantos livros, quantos universos Monsieur iria perder, tendo que se deslocar até esse tal parque. Na volta, aposta Monsieur, deve ter até engarrafamento. Em 2009, a internet é o melhor lugar para se estar – mas para comprar um presente ali não dava, dessa vez não chegaria a tempo. Iam ter que comprar na rua.

Em três de dezembro de 2009, Monsieur e Napoleon vão ter que sair de casa. Amanhã é aniversario de Marguerite, e hoje está nublado e vai chover. Napoleon e Monsieur vão sair de casa hoje, mas só serão vistos de costas, para que ninguém veja que estão sorrindo. Não serão pegos nem pelas câmeras do metrô, dentro de um filme de ação.

 

***

 

Moema Vilela nasceu em Campo Grande (MS). Escritora e jornalista, é doutoranda em Letras pela PUCRS. Graduada em Jornalismo (UFMS), mestre em Estudos de Linguagens – Linguística e Semiótica (UFMS) e em Escrita Criativa (PUCRS), trabalha com comunicação e artes desde 2000. A coletânea de contos Ter saudade era bom foi lançada em 2014, pela editora Dublinense.

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