Entrevista com Miguel Sanches Neto

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Entrevista com Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto lançou neste ano o volume de contos A bicicleta de carga e outros contos, com 17 textos. Autor conversou com o Homo Literatus sobre o livro e outros assuntos

Miguel Sanches Neto

Miguel Sanches Neto acorda às 4h todos os dias. Morador de Ponta Grossa (PR), ele dedica 12 horas diárias ao seu trabalho: o de ser reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professor universitário desde 1993, neste ano ele venceu a disputa pela cargo mais alto da instituição.

“Minha dedicação nos próximos quatro anos será total à reitoria, e só aceitei o desafio porque tinha uma poupança literária, alguns livros já escritos. Precisarei apenas de tempo para concluir as revisões destes livros, para isso minhas matinadas são suficientes”, diz.

Escritor profissional há mais de duas décadas, Miguel Sanches Neto é prolífico. Desde o início da carreira, já são cerca de 40 livros, e os gêneros variam: poesia, romance, conto, infanto-juvenil. Ao longo dos últimos anos, o autor vinha se dedicando ao romance.

Em 2018, entretanto, Sanches Neto voltou à narrativa mais curta, o conto. Pela Companhia das Letras, publicou A bicicleta de cargas e outros contos, lançado em agosto.  “O conto é a prova de fogo para o ficcionista. Nunca deixei de escrever contos, mesmo quando estava mais empenhado em escrever romance, porque há coisas que só conseguem ser ditas neste formato. Um romance pode ter passagens imperfeitas, mas o conto não aceita sequer uma frase fora do lugar. Este exercício de acabamento é o desafio do conto.”

Em entrevista ao Homo Literatus por e-mail, realizada antes do segundo turno eleitoral, o autor falou sobre o livro mais recente, a vida como reitor e o sobre o candidato dele para as eleições deste ano.

Por que um livro contos agora, após a publicação de uma série de romances?

O conto é a prova de fogo para o ficcionista. Nunca deixei de escrever contos, mesmo quando estava mais empenhado em escrever romance, porque há coisas que só conseguem ser ditas neste formato. Um romance pode ter passagens imperfeitas, mas o conto não aceita sequer uma frase fora do lugar. Este exercício de acabamento é o desafio do conto.

O volume reúne 17 contos. Como foi o processo de escrita de cada um deles?

Cada um nasceu em momentos muito diferentes, em que eu fui ferido emocionalmente por alguma história que queria ser narrada. Nestes momentos, tento não me dedicar à escrita, para ver se aquela força permanece ativa em mim. Se ela não decai, eu me dedico a escrever com o máximo de velocidade. Depois deixo num canto por meses ou anos, para ir limando a linguagem até que o texto me satisfaça.

Em relação a alguns de seus últimos livros, pelo menos “A máquina de madeira”, “A Bíblia do Che” e mesmo “Chá das cinco com o Vampiro”, “A bicicleta de carga e outros contos” tem mais lirismo na prosa. Creio que isso não seja natural e sim pensado. Qual o motivo para isso?

O conto, enquanto linguagem, está mais próximo da poesia do que o romance, o que leva o autor a dar um tratamento mais estético, menos realista. Isso talvez explique o tom lírico que você encontrou. Outra questão é que muito contos do livro têm temas mais sórdidos, como sexo e morte, o que exige um investimento de linguagem para destacar a sua literariedade.

No conto “Todas as mãos” você escreveu que “um piano está sempre à espera de nossas mãos”. No caso do escritor, em tempos como o que estamos vivendo – crise política, problemas econômicos no mercado de livros etc. –, o papel em branco espera as mãos dos escribas?

Escrevo direto no computador. Então, o teclado aguarda a dança de nossos dedos. É mais difícil em tempos muito ferozes como os de hoje uma dedicação plena à ficção. Mas esta é mais uma prova de que a literatura está acima de tudo para o ficcionista. Nós jogamos a nossa vida nesta tarefa, que ora tem mais ora menos valor social. Os que estão reticentes quanto à validade da escrita acabam desistindo. Para mim, toda linguagem quer se tornar literatura.

Boa parte do volume perpassa o tema amor, relacionamento, envolvimento entre pessoas. Posso estar enganado, mas isso não ficava tão claro em livros anteriores. Falar sobre amor se tornou uma urgência para você?

Sempre foi uma temática presente. O amor agora, erótico, afetivo ou familiar, ganhou uma centralidade por esta natureza poética do conto. Falar sobre o sentido da vida de forma a que não nos enganemos sobre o que é importante. Outra temática importante é a da escrita, pois continuo explorando algo que marca minha literatura, que é a trajetória de personagens escritores, seus dramas tanto humanos quanto de linguagem. Diria que a marca destes contos seja a trajetória de personagens colocados diante de uma situação traumática, com a qual eles não sabem bem como lidar. Daí é que vem a intensidade das histórias.

No conto “Pintado para a guerra” você escreveu que “Escrever também não tem mais sabor. Para quê? Para se sentir justificado? Vaidade, tudo é vaidade, e escrever é a vaidade das vaidades”. O autor Miguel Sanches Neto concorda com isso?

O personagem do conto é um escritor que desistiu. Eu nunca desisto. Nem nas piores conjunturas. Portanto, sou o inverso do personagem. Só a literatura me justifica perante mim mesmo, perante minha vocação, que não quero desperdiçada. Um dos momentos de grande alegria na minha vida é quando estou escrevendo algo, principalmente um romance, em que fico meses voltando alegremente para casa e me trancando no quarto. Este prazer ninguém tira do escritor.

Você é um ótimo em produzir frases de arremate – com qualidade literária, obviamente. “A bicicleta…” está cheio delas. Atualmente, em tempos de polarização política, as campanhas se utilizam de construções textuais para tocar o eleitor. O que um escritor profissional como você pensa sobre isso?

Sou autor de um livro de aforismos – Linhas órfãs –, o que explica meu pendor por frases. E gosto de explorar a fronteira entre os gêneros textuais, então incrustar estas frases é algo deliberado. E mostrar um desejo pensante de minha literatura. Escrevemos para emocionar e fazer pensar. O uso de frases na publicidade política tem outro fim, é para alienar, para espalhar um preconceito, para difamar. Não há nada mais longe do texto literário do que o texto de campanhas políticas.

Ao longo da sua carreira, você produziu livros que abordavam temas relativos à sua vida. Agora, você se tornou reitor da UEPG. A eleição para o cargo, a crise das universidades públicas e o fato de você ser chamado de Magnífico Reitor são itens que lhe tocam para escrever um livro?

Tenho dedicado 12 horas de meu dia para o trabalho na universidade, e meu plano é, nas poucas horas que sobra, continuar um diário íntimo que mantenho desde 2007. Neste diário, os aspectos mais relevantes da condição de reitor estão sendo anotados, em meio a outros que me são marcantes. É nisso que me empenho no momento. O que não descarta que esta experiência renda no futuro um romance de campus, um gênero pouco usual entre nós, mas muito comum nos Estados Unidos. São os romances que têm como temática a vida no campus universitário e suas tensões. Um exemplo de romance neste gênero é Stoner, de John Williams. Aliás, uma obra-prima.

É possível conciliar a carreira de escritor com a de reitor?

Minha dedicação nos próximos 4 anos será total à reitoria, e só aceitei o desafio porque tinha uma poupança literária, alguns livros já escritos. Precisarei apenas de tempo para concluir as revisões destes livros, para isso minhas matinadas são suficientes. Acordo todos os dias a partir das 4 da manhã. E ainda sobra tempo para uma hora de atividades físicas.

Se pudesse escolher um dos dois candidatos à presidência da República para ler o seu livro, quem seria? E por quê?

Não tem escolha. O único que se interessa por cultura e arte é o Haddad. A literatura é o exercício de se colocar no lugar do outro e não julgar. Infelizmente, o outro candidato não seria capaz de fazer este movimento de humanização. Quer condenar e eliminar o diferente.

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