Cinema e música: uma combinação arrebatadora – parte 2

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Cinema e música: uma combinação arrebatadora – parte 2

Na parte dois da sua antologia pessoal de filmes com cenas musicais, Bibiana lança mão de obras clássicas e contemporâneas do cinema.

Cena do filme francês Ha (2012)

Parte 2

Leitores ansiosos, podem se tranquilizar: estou de volta com a parte 2 da lista que revela algumas das minhas cenas favoritas quando se trata de unir cinema e música, ou, como alguém algum dia já disse, as duas coisas mais importantes entre as coisas desimportantes deste mundo (ou algo assim). Sem mais delongas, vamos a ela.

Buffalo ’66 (1998, Vincent Gallo)

Talvez tenha algo a ver com a luz, com o enquadramento, ou com o fundo vermelho à David Lynch. Quem sabe seja o ar doce e ao mesmo tempo insinuante da jovem Christina Ricci enquanto assiste à performance, impressionada. Fato é que o desempenho do veterano Ben Gazzara dublando o clássico Fools Rush In – que, já tendo sido gravado por tanta gente, nesse caso é cantado pelo pai do diretor, Vincent Gallo Sr. – surpreende ao trazer encantamento a um personagem até então brutalizado na figura de um pai autoritário e de poucas palavras. O abrupto retorno à agressividade, segundos após o toca-discos ser desligado, é o despertar do sonho, quando o filme nos faz notar que os momentos de ternura, em certos ambientes, têm prazo curto para acabar, não ultrapassando a duração de uma música.

Mauvais Sang (1986, Leos Carax) e Frances Ha (2012, Noah Baumbach)

Como todo bom cinéfilo que gosta de ostentar seu vasto conhecimento sobre cinema, eu também sou dessas que adoram captar referências de um filme em outro. Quando a referência envolve música, então, eu fico animada nível “Greta Gerwig correndo na rua ao som de David Bowie”. Ou seria “Denis Lavant correndo na rua ao som de David Bowie”?

Para quem não sabe, a conhecida cena de Frances Ha, em que a personagem-título esbanja toda a sua liberdade millennial em passos saltitantes pelas ruas de Nova York, enquanto ao fundo ouvimos a dançante Modern Love, reproduz fielmente uma cena contida no filme de Leos Carax, lançado 26 anos antes, prestando-lhe uma justa homenagem.

Confesso que a performance de Lavant, a meu ver, é mais enérgica e teatral, mas talvez eu seja suspeita para falar (vide a parte 1 deste texto, em que também ele, meu ator esquisito favorito, aparece), e talvez, também, o charme de Gerwig esteja justamente em seu jeito desengonçado de agir. De qualquer forma, fica a dica para a sessão dupla: de um jeito ou de outro, a vontade de meter nos ouvidos um Bowie no volume máximo e correr sem destino por aí é o que sobrará ao subirem os créditos.

Mommy (2014, Xavier Dolan)

Não deixa de ser um clichê do cinema quando, em um filme, uma música é capaz de reaproximar personagens que se amam, mas que, por algum motivo, vivem um conflito pessoal. Mesmo assim, Xavier Dolan consegue fisgar o espectador com seu apelo ao lugar comum. Na assunção do melodrama e do efeito piegas que uma canção de Céline Dion pode causar, ele se mostra corajoso e verdadeiro, e talvez esteja aí o impacto da cena.

Sem medo da breguice, vemos na tela mãe e filho, ambos com temperamentos que não cessam de se chocar, dançando ao som de On Ne Change Pas (da época em que Dion, canadense, ainda cantava em francês) na cozinha de casa, como se nunca se tivessem estranhado antes. Acompanhados da simpática vizinha que, de certo modo, é também um catalisador dessa relação, os dois bradam sem parar, a plenos pulmões, a conclusão que justifica as constantes brigas, mas também o amor que sempre existiu entre eles: Nós não mudamos.

O abismo prateado (2013, Karim Aïnouz)

Coincidência ou não, eis aqui o exemplo de um filme que tem origem direta em uma música. Trata-se de Olhos nos olhos, canção de Chico Buarque sobre o impacto do abandono na vida de uma mulher, que, na tela, faz breve aparição por intermédio do ator-cantor Thiago Martins. Mas não é dessa cena que quero tratar, e sim de outra, símbolo da catarse emocional que acomete a personagem de Alessandra Negrini enquanto assimila as consequências da perda do marido.

Na pista de dança, os movimentos instintivos da atriz ao som de Maniac, trilha sonora de Flashdance (olha aí mais um caso de referência-homenagem!), são ilustrativos de algo que pode ser tanto liberdade quanto desespero, ou as duas coisas juntas. E nada melhor para um espectador do que presenciar um alguém fictício se desfazendo em pedaços – ao mesmo tempo que os recolhe – à nossa frente, ainda mais quando ao som de uma boa música, não é mesmo?

Spring Breakers (2012, Harmony Korine)

Talvez o adjetivo que mais se encaixa ao cinema de Harmony Korine seja esquisito. Mas, de certa forma, trata-se de um reducionismo que não consegue abranger a riqueza de sensações que seus filmes por vezes suscitam. Enfim, o que pode ser mais esquisito do que um gângster urbano tocando uma balada de Britney Spears ao piano, enquanto três jovens seminuas, vestindo balaclavas cor-de-rosa, dançam romanticamente agarradas a fuzis? Ao mesmo tempo, por que me sinto estranhamente emocionada enquanto a canção prossegue como pano de fundo a uma sequência de atrocidades cometidas por essa nada usual gangue?

Korine busca confundir, e consegue. Não deixa de ser hilário como James Franco leva a sério o sentimentalismo adolescente da performance, e possivelmente seja isso o que mais nos atordoa: é pra rir, chorar ou se revoltar? Na falta de uma resposta certa, sintamos tudo – no mundo de Harmony Korine, o inesperado é a norma.

Créditos HL

Esse texto é de Bibiana Lucas para nossa coluna Cinemateca HL. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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