A entrevista como arma de aproximação entre o escritor e o público e o exemplo do projeto de Marcelo Batalha, que nos mostra que o escritor é pop.
A deixa de Rubem Braga
Certa vez, o escritor Rubem Braga foi convidado a falar em um evento universitário dedicado à sua obra. Chamado pelo nome, ele se senta bem no centro de uma mesa, acuado como uma criança em dia de exame na escola, onde o aguardam como a parte que falta para fechar um quebra-cabeça de mil peças.
Nem é preciso que ele abra a boca; o incômodo do cronista capixaba está escrito em seu cenho. Rubem Braga era daquelas pessoas que sabiam falar com o olhar – na realidade, com um eloquente par de sobrancelhas.
O entusiasmo é geral entre os presentes. Entre um professor doutor e outro, o mestre de cerimônia distribui cumprimentos, um aquecimento antes do discurso principal, dirigido a Rubem. O silêncio de Rubem é sem legenda. Dada a largada, começa a sessão matinal de apresentações: a obra do autor corre de lá para cá, como uma bolinha de pingue-pongue, em lances espetaculares.
Rubem permanece em silêncio absoluto, mas seu corpo volta a se comunicar. Recostando-se um pouco na cadeira, parece até que o convidado sente algum alívio por ter sido “esquecido”, e poder apenas assistir ao espetáculo.
Chega, porém, o momento das perguntas do público. Os jovens universitários, empenhados em impressionar o autor-entidade, o crivam com questões sobre a sociedade, a política, a humanidade, a existência. Rubem só acha para dizer: “Se quiserem saber o que penso, leiam os meus livros”.
Podemos tomar a declaração do cronista como amostra da rabugice comumente atribuída aos escritores/artistas. Ou podemos escutá-la de um outro jeito, colocando-nos no lugar de Rubem: como será, para o escritor, ser solicitado (quase o tempo todo) como fonte sobre a própria obra e sobre generalidades do interesse coletivo?
“Figurinha fácil”
A visão do escritor como uma “antena da raça” (na famosa expressão do poeta americano Ezra Pound), um profeta ou emissário divino em missão na Terra, capaz de orientar e aconselhar, e até de reformar o mundo, tem importantes raízes na estética romântica.
Nesse mesmo ambiente histórico – o das revoluções burguesas do século 18 –, é que se transfere ao escritor o papel de porta-voz da sociedade e da cultura, antes conferido aos políticos e heróis de guerra.
O escritor se torna, então, pop.
E, como tal, de repente, tem sua imagem reproduzida em cada canto: moedas, medalhas, selos, retratos, estátuas, máscaras mortuárias. A intimidade dessa “figurinha fácil” também passa a ser de interesse comum, importante ou decisiva para a recepção de sua obra.
Denis Diderot, Honoré de Balzac e Victor Hugo são grandes exemplares das primeiras celebridades literárias. O assédio em torno deles era tamanho que passaram a ser comuns, na França, as peregrinações às suas residências. É algo muito semelhante à situação que hoje conhecemos com os famosos de Hollywood, caçados sem trégua pelos paparazzi.
Desejo e fetiche
As formas desse assédio, embora mudem ao longo do tempo, preservam o desejo e o fetiche coletivos por uma aproximação do escritor. Ele, ao mesmo tempo, repudia e alimenta esses desejo e fetiche.
Em alguns casos, o desejo é mais voltado ao homem de carne e osso, à biografia, cultuada como chave para “abrir” a obra. Em outros, ele assume a forma vaga de uma projeção de sabedoria ou lucidez sobre o escritor, como se ele fosse alguém que compreendesse o que não compreendemos – e que, por isso, pudesse nos salvar.
Isso se explica bem em sociedades paternalistas como a brasileira, sempre à espera de messias. É como se sobrasse ao escritor – e à literatura – a tarefa de explicar, de instruir, de corrigir. É como se, enfim, alguém pudesse nos dizer quem somos e por que somos assim.
A tradição da entrevista
Voltando à vaca fria, uma das formas nas quais evolui o culto ao escritor é a entrevista. Portanto, não se espera mais que o escritor só escreva, mas que se posicione publicamente, oferecendo reflexão válida sobre os problemas que o cercam.
A entrevista, em suas muitas tipologias e formas de circulação, é uma interação verbal entre duas ou mais pessoas. Bem conduzida, ela conjuga escuta e fala com a finalidade de construir debates, difundir conhecimento e formar opinião. Nesse sentido, é também uma confirmação da importância do entrevistado em algum setor da sociedade, alguém cujas ideias e experiências merecem ser ouvidas, preservadas e, em alguns casos, imitadas.
Artistas e escritores, ao serem incorporados à categoria de celebridades, são entrevistados mais do que frequentes. É normal que essa solicitação se intensifique na medida em que a figura em questão é validada pelas instituições culturais, e que sua obra agrade ao gosto de uma época.
A entrevista com escritores no Brasil
No Brasil, a prática de entrevistar escritores e artistas – caprichando nas pautas sociais e políticas – se alarga entre as décadas de 30 e 60. Vários fatores estão associados a esse fato, dentre os quais: 1) o início da profissionalização e sindicalização da atividade jornalística (antes livremente exercida por intelectuais, jornalistas “práticos”) e 2) a influência do projeto do realismo socialista entre os intelectuais, política de Estado oriunda da União Soviética, que buscava alinhar todas as manifestações artísticas segundo as ideias da utilidade e da transformação social.
Esses acontecimentos alimentam a percepção do escritor como alguém também dotado de uma função social e econômica, como peça também chamada a participar na grande engrenagem coletiva. Nesse cenário, a entrevista chega a ser usada como patrulha (às vezes, velada) da atividade do escritor, um “lembrete”, para ele e para todos, de que ele tinha, neste mundo, uma tarefa.
Era também comum que os próprios escritores, muitos dos quais atuaram como jornalistas, ou que outros profissionais afins, ligados à cultura e à educação, fossem designados com a tarefa de entrevistar outros escritores. Nesses casos, a entrevista tornava-se ainda um momento de comunhão, de troca, de camaradagem. Ela era propriamente uma conversa.
Seja como for, a entrevista vai se consolidando como importante recurso na definição e validação do escritor. O escritor é como uma moeda: a união entre duas faces, cara e coroa. De um lado, o que ele produz (cara); de outro, o que produzem sobre ele e o valor que lhe emprestam (coroa).
É claro, esse trabalho que a cultura tem de fabricar discursos sobre um escritor e sua obra é vital para constituir uma tradição literária em um país. Nesse contexto, a entrevista comparece mais uma vez, veiculada pelos meios impressos, pelo rádio, pela televisão e, mais recentemente, pela internet.
Literatura em perigo
Como sabemos, o Brasil é ainda iniciante nesse trabalho. Isso se deve às duras realidades do analfabetismo dominante, à falta de acesso ao livro (por sua excessiva taxação, o que faz dele um artigo de luxo) e às políticas de fomento ao letramento literário.
Tudo isso compõe o quadro de total desprestígio da literatura como disciplina escolar e universitária, cuja morte – como bem lembra Leyla Perrone Moisés no ensaio “Literatura para todos” (2006) –, no decorrer no século XX, foi anunciada inúmeras vezes. Em paralelo, avança a tecnocracia, como plano político de cultivo de massas cada vez mais esvaziadas de atitude crítica, de imaginário, de criatividade, de individualidade.
A problemática, colocada no Brasil asfixiado de 2021, nunca mereceu tanto desprezo das lideranças políticas e, por mais assustador que pareça, de significativa parcela da sociedade civil, catequizada pelo discurso tecnocrático que demole e demoniza as ciências humanas e as artes.
O exemplo de Marcelo Batalha
Além de seus ganhos inerentes, existem iniciativas que têm o poder de nos inspirar à ação, restabelecendo nossa confiança no poder da vontade e da criatividade individual. Vamos falar de uma delas.
Marcelo Batalha, pernambucano de Vitória de Santo Antão, é professor de português e literatura para o ensino médio na rede pública de seu estado. Desde 2019, ele divide (ou estende) a docência com a coordenação da biblioteca pública escolar Pe. Anchieta, da Escola de Referência em Ensino Médio Dom Vital, em Recife.
Como ele mesmo se define, Marcelo é “um professor com complexo de jornalista”. No vestibular, escolheu jornalismo, mas perdeu o horário da prova. Para não perder o ano, optou então por uma vizinha, Letras.
Mas o acaso que “sequestrou” Marcelo para as Letras não lhe tirou o entusiasmo com a Comunicação, com que ele continua a flertar em sua prática docente, ora criando um jornal com seus alunos, ora fazendo um documentário (com licença de amador) sobre Capitães de Areia, de Jorge Amado.
“Conversa com escritor(a)”
Em 2020, veio a pandemia. A biblioteca, é claro, foi fechada. Marcelo, inquieto com a situação que impedia que as pessoas acessassem a biblioteca física, já não encontrava motivo para deixar na gaveta uma querência antiga: conversar com escritores.
A realidade remota, imposta pelo isolamento, atirou Marcelo no Youtube. E assim nasceu o canal “Conversa com escritor(a)”.
Ocupar o Youtube, símbolo de um novo paradigma de criação e distribuição de conteúdo, com uma expressão ainda muito associada ao passado – a literatura – faz, por si só, um tipo de contraste. A surpresa também fica por conta do clima de descontração e informalidade com que Marcelo recebe escritores. Ele conduz a entrevista com o furor do leitor-amante e com a liberdade de um não jornalista.
O gênero surge, assim, na sua melhor versão: fazendo ocasião para o encontro, vencendo as distâncias do momento, para o estar e viajar junto. Marcelo é o mediador dessa nossa reunião à volta do fogo, reeditada na tela.
Já se vão mais de 40 lives “jogando conversa dentro” com escritores de todos os tamanhos e feitios, uma lista que inclui Walter Omar Kohan, José Castello, Marina Colasanti, Luiz Rufatto, Conceição Evaristo, João Azanello Carrascoza e Mario Filipe Cavalcanti, editor do nosso Homo Literatus.
A imagem que Marcelo empresta – citando Antonio Carlos Secchin – para traduzir esse espírito que anima suas conversas é “de pés descalços”. Existe zelo, mas não artifício. Falar de literatura assim, sem máscara, acolhendo os distintos graus de aproximação do público com a literatura e prezando pela diversidade dos entrevistados, cria, igualmente, uma diversidade de interações possíveis entre eles e o público.
A literatura como transformação
Segundo Marcelo, uma coisa é certa: “O esplendor acontece quando os alunos entram.” O brilho nos olhos de cada um, ao conversar com o antes inatingível escritor, os empodera. E também tem, para o entrevistado, sabor de homenagem. Com isso, o canal faz jus ao que a “escola (pública, em especial) faz, enquanto equipamento social: aproximar”.
“Conversa com escritor(a)” chama para si a tão falada necessidade de ação para transformar o mundo. A começar pelo mundo de cada um. E qual é a “utilidade” da literatura, senão essa?
“A literatura já tem um significado útil e um papel social quando atravessa cada indivíduo. Ela é uma ponte entre o indivíduo e algo que é muito distante dele, que é ele mesmo.” (Marcelo Batalha)
A autora agradece a disponibilidade e generosidade do professor Marcelo Batalha para a composição dessa matéria.
Referências
BONNET, Jean-Claude. Le fantasme de l’écrivain. Poétique – Le biographique, Paris, n. 63, p. 259-277, 1985.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura para todos. Literatura e sociedade, v. 11, n. 9, p. 16-29, 2006.