Uma conversa com Helena Brennand, que, com sensibilidade e profundidade, fala da obra e vida de Francisco Brennand, seu pai.
“Quando eu pinto, sou um artista ocidental. Quando faço cerâmica, não tenho pátria; minha pátria é o abismo pelo qual vou resvalando sem saber o que encontrarei no fundo. Como tenho arrefecido os meus ardores, sigo planando sobre os desfiladeiros.” Oráculo – Francisco Brennand
Infelizmente não tive o prazer de estar diante de Helena Brennand, para termos essa conversa. Foram e são vários os empecilhos: a distância, a pandemia, as rotinas. Apesar das dificuldades, desdobrando-se entre concentrar energias para dar início ao seu projeto de livro de contos e dar pulso à sua carreira como escritora, cuidar da filha bebê, gerir a representação da venda da linha comercial deixada por seu pai, a linha decorativo utilitária da Oficina Cerâmica Francisco Brennand e todos os atravessamentos da vida pessoal, Helena acolhe as perguntas realizadas pelas vias que nos foram possíveis com seriedade.
Ao falar da obra de seu pai, Francisco Brennand, ela apresenta uma perspectiva profunda, promovendo um encontro entre o olhar técnico e sensível. Nesta conversa, você conhecerá mais sobre a obra de Francisco pelo viés de Helena Brennand que, nas palavras dela, é uma mulher que busca o seu próprio caminho, com uma elaboração madura e consciente do legado que seu pai lhe deixou, mas que não se confunde com o caminho que ela vem construindo para si.
Nada mais que pudesse falar sobre Francisco Brennand seria melhor do que as palavras que Helena dedica a esta troca, capaz de tocar e estimular ainda mais o interesse pelo trabalho de um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros. Portanto, convido o leitor a participar dessa conversa conosco prosseguindo.
Paula Peregrina: A Oficina Francisco Brennand é um monumento desde sua arquitetura ao que propõe. Acredito que você presenciou todo o seu processo de concretização e gostaria que falasse sobre isso, sobre como foi sua idealização, construção, fundação e funcionamento, inclusive póstumo.
Helena Brennand: Em 1971 meu pai já havia saído das empresas da família e já era um artista completo. Não posso dizer que presenciei concretizações, pois nasci em 1984, mas sim, conheço histórias.
Depois de ter comprado ao meu avô – persona que por motivos óbvios não pude conhecer, já que meu pai tem idade para tal papel – uma fábrica de “telhas e tijolos”, em estado de ruína, a antiga Cerâmica São João da Várzea, todo o projeto foi iniciado!
Mas, para entender, é preciso citar antes que, quando menino, F.B. (Francisco Brennand) ia à fábrica do pai e lá brincava com seus irmãos. Memórias de infância ligadas à luz e sombras e mistério foram refletidas no projeto da hoje Oficina Cerâmica Francisco Brennand.
Guiado por suas memórias de infância, tino, intuição e sabedoria, as ruínas foram se erguendo pouco a pouco, sem anteprojeto. Ele mesmo, de maneira autodidata, foi arquiteto do espaço. O grande projeto era a própria obra, iniciada como Oficina (espaço) e misturada às primeiras esculturas e pinturas feitas lá. Alguém certa vez disse: a Oficina Cerâmica Francisco Brennand é uma grande escultura, além de todas as outras óbvias que são.
Desde o início, seu funcionamento foi puramente como atelier do artista, apesar de pouco a pouco ter cara de museu a céu aberto, transformou-se numa empresa privada, onde também foi possível a meu pai ter sua linha de design com ladrilhos/pisos e objetos decorativo/utilitários, os que hoje tenho representado através do perfil “Jardim Arte Helena Brennand”, no Instagram. Então, durante muitos anos, as pessoas acreditavam estar visitando um museu, mas na verdade era apenas o atelier/empresa do artista, que levava a conceitualização estética e de movimento de um museu, mas que não atuava com agenda ou eventos de espaços culturais de um modo geral.
Até 2019, como presidente do local, foi povoando sua corte imóvel, suas obras, pensamentos e palavras. Até que, em dezembro de 2019, faleceu. Quando adoeceu, chegou ao hospital todo sujo de tinta, passou o último ano de sua vida pintando incansavelmente uma série que chamou de “Delírio.” Dois meses antes, o local já havia se transformado num instituto sem fins lucrativos, como hoje o é: o Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand.
Muitos acham que os filhos são os donos do lugar, mas agora aquilo é uma organização a serviço de aspectos importantes para desenvolvimentos do ser humano e da sociedade e, sobretudo, a garantia do que ele tanto queria: a conservação de sua obra.
Como as terras do entorno sempre pertenceram ao seu irmão, Cornélio Brennand (meu tio, que não conheço) – as pessoas sempre acharam que papai era o dono de tudo, inclusive da mata -, foi justamente o Grupo Cornélio Brennand quem assumiu a gestão institucional do lugar. Mas isso não quer dizer que eu como filha me sinta em casa. Muito pelo contrário. Mal conheço essa parte da família e os Brennand têm essa característica de “cada um no seu quadrado”. A família tem várias partes, sem convivência entre si.
Paula Peregrina: No contato com a obra de Francisco Brennand e lendo seus escritos, tenho a impressão de que ele se aferra a permanecer fora do tempo. Não como um artista anacrônico, mas por estabelecer uma relação cósmica com o tempo, como se compreendesse o tempo qual uma entidade difusa e circular, mais do que uma medida. Como você percebe a relação de Francisco com o tempo e como isso reverbera em seu trabalho?
Helena Brennand: Meu pai foi um homem extremamente holístico. A vida por ele era vista como fenômeno em sua totalidade e globalidade. Ele se preocupava, por exemplo, com uma raposa que precisava de selva para chegar até o rio e beber água, foi guardião das florestas em volta da Oficina, apesar de nunca ter sido delas o dono. Não permitiu nenhum tipo de projeto em volta que pudesse prejudicar o tráfego silvestre. Ele costumava falar sobre tudo, inclusive sobre o tempo. Parafraseava um autor que não sei dizer o nome, quando lembrava que não perdemos nada na vida, já que a única coisa que temos é o presente. “Ora, não se pode perder o passado, nem o futuro”, não podemos perder algo que não existe, o que temos é o agora! Falando assim parece estarmos numa aula de yoga, mas não. Antes do yoga virar moda, papai já praticava esse tipo de coisa, não que fosse yogui ou vegano, ele simplesmente carregava um conhecimento enorme e sempre esteve à frente do seu tempo. Esse conhecimento se estendia ao plano físico de sua forma humana, sua força e massa. Era um velho viril, de timbre marcante e forte, tanto que, perto dos 70, ainda teve mais um filho… Me considero a caçula porque sou a mais nova das filhas “mulheres”, ele sempre teve mais afinidade com as filhas mesmo…
A maneira de abordar sua obra escultórica foi extremamente ligada ao sincretismo e à totalidade histórica dos fatos reais ou dos mitos, de forma cronológica ou imaginária. Ele era um verdadeiro astronauta! Criava de formas microscópicas (sem ter noção que o fazia) a grandes Deuses em seus finais trágicos.
Sempre costumava dizer: “não é que eu defenda um lado e rebaixe o outro”, mas num raio de alguns quilômetros, trato da história católica num extremo e noutro, faço uma homenagem aos povos dizimados pelos espanhóis em seus enormes cavalos. Você já imaginou o que é nunca ter visto um cavalo?” Ele me perguntava retoricamente. Os Incas e Astecas deviam achar serem Deuses descido das estrelas, eu respondia. Quando dizia isso, estava fazendo referência ao Templo do Sacrifício, com Moctezuma e Atahualpa, presos de um lado, e do outro, a reverência à Capela Imaculada Santa Conceição. Em ambos os lados, extremo respeito, reflexão.
Paula Peregrina: A relação de Francisco Brennand com o Renascimento e, talvez, com a Idade Medieval e sua maneira distinta de lidar com arte, é manifesta em seus escritos e em seu trabalho. Me chama a atenção particularmente como ele recupera aspectos da estética dos arabescos, que também foi revisitada naquela época, além de buscar para a arte uma experiência mais coletiva do que individual, aventurando-se mesmo na produção de peças utilitárias, que percebo como uma espécie de defesa de uma arte feita para servir como algo sublime. Essa afinidade culmina na proposição da Oficina inspirada naquele contexto. Em contrapartida, ele parece manifestar certa insatisfação e deslocamento ante a sua própria época, assim como ao fazer artístico e ideias sobre arte da modernidade à atualidade. Poderia falar mais sobre como ele manifestava isso cotidianamente, em seu discurso e fazer?
Helena Brennand: Existe um painel – o primeiro feito no conjunto do grande pátio da Oficina, que diz mais ou menos assim: “Partidos estão os vasos harmoniosos, os pratos de faces gregas, os grandes clássicos, mas, a água e o barro continuam a girar nos casebres dos oleiros.”
Conhecido como mestre do fogo, não podemos deixar de citar a terra e a água, responsáveis pela feitura das formas primordiais na historicidade humana: os utilitários.
No início da carreira, FB costumava fazer jarros, vasos, pratos, cuias… esses, assim como toda obra, levaram sua assinatura. Posteriormente, foi criada a sua linha de design, que leva até hoje a marca da Oficina Cerâmica Francisco Brennand. Um desdobramento de sua obra onde ornamentos de sua autoria são delineados nos pequenos potes tão deslumbrados e desejados pelo público.
Dessa forma, ele mistura sua existência e seu deslocamento no tempo, e traz de volta à vida os fatos esquecidos e mais simples, os desconhecidos e os que estão por vir. Esse último ainda não consegui enxergar em sua obra, mas sem dúvidas está lá. Sua obra transborda tudo o que sempre leu, leitor assíduo que era.
Paula Peregrina: Me parece que Francisco era dono de uma espiritualidade própria, elaborada a partir do encontro do seu íntimo com mitos diversos, com os quais ele mantinha uma relação de respeito, curiosidade e temor. Elementos simbólicos formais de crenças distintas, da tradição ocidental à cultura regional se encontram com reflexões filosóficas em busca de uma significação para a existência. Ele mesmo assume não ser um pesquisador, não investigar profundamente os elementos dos quais se apropria, ao mesmo tempo em que de maneira orgânica elabora suas apropriações intuitivas. Pensamentos sobre a vida, a morte, transformação e purificação ganham especial ênfase em seu trabalho. Poderia falar mais sobre como ele lidava e projetava o aspecto espiritual-filosófico em seu trabalho?
Helena Brennand: A morte era um tema terrível e dubiamente respeitado por ele. Como já citei mito e sincretismo, uso agora para responder essa pergunta o exemplo do “Oxossi”. Existe da parte de algumas pessoas na internet uma discussão sobre aprimoramento cultural. O que vou dizer aqui e agora: nada tem a ver com isso. Essa identidade própria sobre seu espírito mistura crença, religião e também literatura e filosofia.
Tamanha era sua ótica sobre poderes e símbolos, números, presságios e sinais, que adotou para si o arco e flecha de Oxóssi, que ele nem sabia o significado inicialmente, apenas teve uma relação estética e vibracional com a forma e, após entender do que se tratava, continuou e levou-a consigo até sua morte.
Sem contar que Oxossi, ali na Oficina, não está absolutamente fora de seu contexto histórico, uma vez que ele é o Deus protetor das florestas e o espaço é rodeado de remanescentes da Mata Atlântica no bairro da Várzea, no Recife. Como ele costumava dizer, a Oficina fica no coração da Várzea.
Paula Peregrina: Continuando, no escrito O Oráculo Contrariado, Francisco diz de uma mitologia pessoal, que ele parece elaborar parcialmente nessa narrativa e magnificamente na Oficina. Como você percebe o reflexo desse mito próprio na vida e na obra de Brennand?
Helena Brennand: Sei que tenho esse escrito aqui em algum lugar. Mas prefiro responder assim, de forma espontânea, pois, na verdade, toda essa descrição que faço aqui desde o início é uma coisa só, assim como a Oficina é uma grande escultura, uma grande obra unitária em sua totalidade.
Quando citava as artes iniciais, nos primórdios das cavernas, sempre lembrava que os artistas eram “iniciados”, pessoas que podiam prever o futuro e, de alguma maneira, proteger a tribo se expressando através do desenho. Sendo assim, trazia de forma parecida essa premissa ao contemporâneo, dizendo que a arte era um antídoto contra a morte. Vejo ele falar em temas entrelaçados enquanto digito isso. A arte em si seria um grande oráculo então.
Paula Peregrina: Inclusive considerando que você é artista, me interessa saber também a nuance de Francisco como pai-artista. Como foi essa relação? Qual legado ele deixou para você e para a família?
Helena Brennand: Digo que sou criadora de uma percepção muito própria sobre as coisas, ótica particular e sensível. Onde há autoria, há arte. Então sim, sou artista, mas sobretudo da imagem e da palavra.
Não sou escultora, nem pintora ou desenhista – apesar de já ter desenhado muito na infância, adolescência e início da vida adulta, fazendo um breve curso de desenho com Abelardo da Hora, inclusive. Hoje só fotografo e escrevo, mas tudo de uma maneira muito voltada a mim mesma, nada publicado até agora ou reconhecido pelo público.
Papai dizia que eu era uma escritora, passou anos insistindo nisso e eu, na época, só sorria ao ouvir. Sempre me incentivou neste sentido. Mas aí vem a questão que já está na pergunta e que me lembra um vídeo que fiz outro dia no “Jardim Arte Helena Brennand”: ser filha(o) de um ídolo, uma grande pessoa, uma grande árvore, traz proteção, mas também traz sombra. Não foi fácil de jeito nenhum e posso dizer que minha sorte foi ter rapidamente entendido ele como artista e não apenas como pai, do contrário eu estaria perdida.
No mais, éramos mesmo muito afinados, não havia ninguém melhor para conversar. Hoje, me sinto extremamente só, sem fala, quase muda. Sou feliz em lembrar de um de seus elogios a mim: “Helena, você é uma pessoa que sabe conversar.”
Créditos HL
O texto acima é de autoria de Paula Peregrina, atendendo sugestão de pauta do Editor-chefe do Homo Literatus Mario Filipe Cavalcanti. A revisão é de Fernando Araújo. A edição é de Nicole Ayres, Editora Assistente do Homo Literatus.