Série Postais – Porca prenha // Remetente: Monique Revillion, Destinatário: Diego Moraes

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Na série ‘Postais’, um autor envia um cartão a um outro autor, cuja imagem este terá de se inspirar para a escrita de um conto. ‘Porca prenha’, de Diego Moraes, foi baseado na fotografia de Monique Revillion.

Postal Monique

 

 

Porca prenha

 

O leitão bonito prostrado na mesa. Parecia um banquete de Salomão. Tinha até maçã engasgando a boca do animal. Uma matança só pra botar uma fruta na boca do bicho. Tudo enfeite para gente chique comer com os olhos.

— A escrita é um bicho raivoso dentro da gente. Ontem escrevi tanto que meu braço parecia uma tora de árvore perdida no rio da mesa da patroa – disse Zacarias pisando em formigueiro.

— Oxente! Vai um trago de porronca, Zaca? – perguntou Nestor.

— Esse negócio de escrever seca a gente feito maracujá de gaveta. Tem outra: escrever demais enruguece a vista.

— É mermo! Os caras ceifadas dos livros da casa de sinhazinha tem tudo cara de velho passado. Ao redor dos zôlho parece as dunas do Maranhão. Umas, umas, uma, umas linhas invocadas de velhice.

Davam enxadadas certeiras no chão seco e sem vida no quintal da fazenda. Um passo a mais estouraria o dedão do outro e logo entrariam em desavença. Daria fim na prosa lírica de manhã de terra molhada de garoa; colocariam panos envelhecidos na sela do cavalo doado sem olhar os dentes e partiriam sem rumo em busca de uma porta onde lhes dessem canseira e um prato raso de comida. Homens pobres e banguelos, pessoinhas de bom coração. Tão almas límpidas que eram forasteiros e não tinham chapéus boiadeiros para se envaidecerem no deserto do abandono de suas próprias vidas.

— Ê, Zaca!

— Fala, cabra!

— Vós já lestes coisa que escorreu choro da vista?

— Vamo deixar de prosa e vamo trabalhar é que é.

— Samo de compadria antiga. Fala macho, que foi? Pode se abrir que sou teu camarada.

Zacarias fez migué de choro. O coração palpitando mais que navio que dá as costas para um antigo amor no porto do Golfo Pérsico. Enxugou o suor da testa, dando uns estalos nos dedos. Desses que os peões dão no alto das obras dos prédios, quando estão agoniados de quentura na venta. Procurou uma dose de pinga pra arder na goela e aí combinaria com a pergunta tragicômica do camarada que mais parecia uma espécie de inquisidor analfabeto degolando cientistas da Idade Média.

— É, é, é. Vamo deixar dessas perguntas, Nestor – disse Zacarias enrolando a fala como esses gagos encabulados que cruzam de frente com uma galega bonita.

Ficaram calados. As enxadadas pareciam machadadas violentas. Como se a terra tivesse culpa das desilusões do mundo. O sol ardia em lombo de calango.

— Calma, calma, homem! Não se zangue. A terra não sangra. Roça devagar se não tu quebra o cabo da enxada. Dá um abraço aqui. Quero sentir o teu cheiro de marcenaria molhada. Dá que vou deixá dessa prolongação de raiva – disse Nestor.

Os dois apertaram-se forte e demoradamente como se o gambá fizesse as pazes com a raposa e, do nada, começou chover forte na terra seca, de inferno rachado de sertão, provocando sorrisinhos nos cantos. Se a vida fosse literatura pura, brotaria uma flor de plástico bem no meio deles, e despencaria frutos aos montes, e os cães correriam destrambelhados adubando os campos alegres, e as moças pegariam a ventania vespertina de portas abertas.

— Sabe, Nestor, o dia que mais chorei na vida foi o dia que li o bilhete da Carminha. Num papel de pão amarrotado, ela disse que estava engordando como uma porca prenha, mas, na verdade, era uma menina que viria chorar o mundo.

Nestor puxou do bolso uma caixinha de fósforos úmida tentando dedilhar um samba antigo:

— Hoje tá arre de bom pra beber. Sabe que toda taberna que vejo me lembra Noel Rosa?

— É. E todo passo bêbado me lembra Cartola.

Os dois caminharam e olharam pro sol.

 

***

 

Diego Moraes (Manaus, 1982) é um escritor brasileiro. Publicou os livros A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013), ambos pela editora Barteblee, e Um bar fecha dentro da gente (2015), livro de poesias publicado pela Douda Correria, de Lisboa.

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