Um dedo de prosa sobre três contos de Machado de Assis

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Uma breve análise de três contos do livro Papéis Avulsos, de Machado de Assis

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Autor de grandes romances, os contos e as crônicas de Machado de Assis ficaram, por muito tempo, nos “desvãos das análises literárias”, textos preteridos que, de uns anos pra cá, vêm sendo resgatados. O autor começou a escrever suas histórias curtas aos 19 anos e seguiu fazendo até o fim de sua vida. Como era comum e tradicional na época, os contos do Bruxo eram publicados em revistas e jornais. No “Gazeta de Notícias, ele publicou 56 narrativas; nas Revistas “Jornal das Famílias,70 e “A Estação”, 37.

A coletânea “Papéis Avulsos” (1882) é considerada um divisor de águas, junto ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880-81). Ambos apontam para a maturidade literária do escritor. Segundo John Gledson, “Papéis Avulsos representa para o Machado de Assis contista o que Memória Póstumas de Brás Cubas representaram para ele como romancista”. Na coletânea há 12 narrativas: O Alienista, Teoria do Medalhão, A Chinela Turca, Na Arca, D.Benedita, O Segredo do Bonzo, O Anel de Polícrates, O Empréstimo, A Sereníssima República, O Espelho, Uma Visita de Alcibíades e Verba Testamentária. Sobre tal edição, na “Advertência” do livro, Machado escreve:

Este título de Papéis Avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram parar aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.

Sem pestanejar, O Alienista, Teoria do Medalhão, O Segredo do Bonzo e O espelho são os contos mais conhecidos desta “uma só família”. Há em comum ente eles a questão do caráter das personagens, tais como: as ações egoístas dos homens, os problemas de volubidade moral, de ganância e do culto da aparência. O Bruxo expõe sua visão pessimista da natureza humana; ora com ironia, ora com humor, ora com ironia e humor.

Na maioria das narrativas, está presente o famoso narrador de Machado: aquele que, no curso da história, se intromete, opina e tenta ludibriar o leitor. Porém, há três contos que, estruturalmente, estão escritos na forma de discurso direto, isto é, de diálogos. São eles: Teoria do Medalhão, Na Arca e O Anel de Polícrates.

Sobre diálogo/dialogismo, vale mencionar o teórico Mikhail Bakhtin, que define o discurso como o confronto de muitas vozes: a do diálogo entre interlocutores e também entre discursos. Em uma passagem de Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin escreve:

As relações dialógicas […] são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância. (p. 34).

Para Bakhtin, o conceito de diálogo é bastante amplo. Segundo o russo, existem num texto, ao menos, duas vozes: “a do sujeito que escreve e outra que o autor parodia”. Assim, conforme o crítico, qualquer texto é dialógico, independente de sua forma composicional. Machado de Assis, certamente, é o autor brasileiro que melhor representa o conceito de dialogismo de Bakhtin, uma vez que em seus textos existem ricas relações dialógicas, incluindo a paródia e a intertextualidade. Então, vamos a eles.

O conto Teoria do Medalhão é o diálogo entre o pai e seu filho Janjão, em noite em que esse chega à sua maioridade. Em tal conversa, o pai faz uma série de aconselhamentos ao filho, para que ele venha a ter alguma projeção social no futuro. Para a empreitada ser bem sucedida, é necessário que o jovem abdique de sua personalidade. Janjão só terá o relevo desejado pelo pai se abrir mão de seu caráter; esvaziando o seu eu e se erguendo através das aparências. Esse breve resumo do conto ilustra bem o que o crítico Antonio Candido escreveu no texto “O Esquema de Machado de Assis”. Lê-se:

Talvez possamos dizer que um dos problemas fundamentais da sua obra é o da identidade. Quem sou eu? O que sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos outros? Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo? Haverá mais de um ser em mim? Eis algumas perguntas que parecem formar o substrato de muitos dos seus contos e romances. Sob a forma branda, é o problema da divisão do ser ou do desdobramento da personalidade, estudados por Augusto Meyer. Sob a forma extrema é o problema dos limites da razão e da loucura, que desde cedo chamou a atenção dos críticos, como um dos temas principais de sua obra. (p. 42)

Nessa história, além da conversa entre o pai e o filho, de maneira muito evidente, ocorrem inevitáveis diálogos com o mundo exterior. O meio social interfere no diálogo interior das personagens. Fica explícito um conflito interno em relação ao posicionamento do eu no mundo.

Já no segundo texto de discurso direto livre, Na Arca- Três Capítulos Inéditos do Gênesis, Machado escreve, como sugere o título, três capítulos bíblicos que não foram publicados. Nesse conto, Noé e seus filhos Jafé, Cam e Sem foram salvos por Deus, por considerá-los uma família modelo para recomeçar a vida na Terra. No entanto, ainda na arca, os filhos de Noé começam a brigar por terra, trazendo à tona a ganância e o egoísmo. Os diálogos do conto são divididos em três capítulos e subdivididos em versículos, tais quais no livro sagrado. Além de “dialogismo na forma”, nesse conto ocorre uma espetacular paródia da escritura bíblica, trazendo o melhor do humor e da ironia machadianos.

O terceiro conto, O Anel de Polícrates, vem marcado pela intertextualidade. A história refere-se a uma passagem greco-romana registrada em História Natural, de Plínio, o Velho. Na conversa, as personagens A e Z comentam sobre o passante Xavier, homem que os dois dizem conhecer há anos. Ao trocarem suas impressões sobre o transeunte, os dois parecem falar de pessoas diferentes. Para A, Xavier é ” rico e prodígio”; para Z, ele é ” homem poupado, sóbrio e pobre”. A e Z falam de “pólos” diferentes: um fala da essência; o outro, da aparência. Ou melhor, falam do Xavier interior e exterior. No conto, Machado reconstrói o mito de Polícrates, porém o manipula, interferindo no desfecho da história da personagem Xavier.

Apesar de os três contos, brevemente citados aqui, apresentarem uma forma composicional diferente das demais histórias do livro, são, como diz o autor, “da mesma família que o pai faz sentar à mesa”. Machado de Assis, através de diálogos e do recurso da intertextualidade, reafirma, nega ou manipula um texto original. O escritor usa e abusa, como poucos, de riquíssimas artimanhas narrativas. Enfim, cria uma mágica poção literária que só um grande Bruxo é capaz de fazer.

Referências bibliográficas:

ASSIS, Machado. Contos/Uma Antologia. 1.ed. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
CANDIDO, Antonio. Esquema Machado de Assis _ in: Vários Escritos. 3ª ed.rev. e ampl. – São Paulo: Duas Cidades, 1995.

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