Albert Camus comenta Oscar Wilde: o artista na prisão

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Em O artista na prisão, Albert Camus fala sobre Oscar Wilde, argumentando que o artista não pode viver alheio a vida.

Untitled-3Albert Camus e Oscar Wilde

Filósofo e escritor, Albert Camus inicia seu ensaio O Artista na prisão (1952) sobre o escritor Oscar Wilde, comentando que até o momento em que escreveu De Profundis e A balada da prisão de Reading, Wilde dedicou-se a provar, pelo exemplo de sua vida, que os maiores dons da inteligência e os prestígios mais brilhantes do talento não bastavam para se fazer um criador. Ele não desejava, contudo, nada mais do que ser um grande artista, e, como a arte era seu único deus, não podia pensar que esse deus lhe recusasse a graça de ser eleito. Wilde afirmava, com efeito, que existem dois mundos, o de todos os dias e o da arte; que o primeiro se repete fastidiosamente, enquanto a obra de arte é sempre única. Ele tinha, por tanto, voltado as costas à realidade para viver apenas dentro da irradiação do que acreditava ser a beleza ideal. Seu maior esforço era transformar sua própria vida em obra de arte e viver apenas sob a lei da harmonia e do refinamento.

Ninguém foi tão longe quanto ele na exaltação da arte e ninguém, durante todo este tempo, foi menos artista. Desprezava o mundo em nome da beleza e ele mesmo, na medida da verdadeira arte, não era quase nada. Toda sua obra de então assemelha-se àquele retrato de Dorian Gray que se cobria de rugas com uma rapidez tanto mais assustadora quanto seu modelo parecia permanecer jovem e gracioso. Quanto à sua vida, da qual desejava fazer uma obra-prima, ele a julga corretamente nas primeiras páginas de De Profundis. Segundo suas próprias palavras, porém, ele quis colocar seu gênio em sua vida e seu talento em suas obras. Suas frases, que eram brilhantes, agradaram a Gide, que as encareceu. Mas não passavam de frases. O mesmo gênio, ou o mesmo talento, basta para a vida e para a obra. Podemos estar certo de que o talento que só conseguiu produzir uma obra artificial só poderia sustentar uma vida frívola e sem alcance. Jantar todas as noites no Savoy não exige que se tenha necessariamente gênio, ou mesmo aristocracia; apenas fortuna. Gide descreve Wilde como um Baco asiático, um Apolo, um imperador romano. “Ele brilhava”, diz Gide. Sem dúvida. Mas o que diz Wilde em sua prisão? “O vício supremo é ser superficial”.

É duvidoso que alguma vez antes de sua condenação Wilde tenha pensado que existissem prisões. Se alguma vez o pensou, foi com a convicção tácita de que não eram feitas para homens de sua qualidade. Ele certamente estimava que o aparelho judiciário não tinha outra função a não ser servi-lo, a ele, privilegiado, posto que foi o primeiro a chamar o pai de Lorde Douglas diante dos tribunais. Por um estranho desvio, aqueles mesmos tribunais o condenaram. Quando desejou pôr a lei a seu serviço, ela o julgou. Foi assim que soube que existiam prisões, antes não pensava nisso.

Embora admirasse Shakespeare, que pôs na cadeia tantas majestades e altezas, podemos dizer também que o admirava sem tê-lo entendido, posto que, em todos os seus pensamentos e suas ações, não se sentia solidário ao povo das prisões. Se a arte era sua única religião, ele era seu fariseu. Não que Wilde carecesse de coragem, pois ele a demonstraria. Mas carecia de imaginação, e os outros só lhe haviam aparecido como espectadores, não como atores ou condenados. Demasiadamente preocupado em causar espanto e em seduzir, condenava-se, como um verdadeiro dândi, a jamais ser seduzido ou chocado por nenhuma espécie de verdade, mesmo a da felicidade que declarava rejeitar. A única felicidade que conhecia vestia-se no alfaiate da moda. “Meu erro”, diz Wilde em De Profundis, “foi confinar-me exclusivamente nas árvores daquilo que me parecia ser o lado ensolarado do jardim, e fugir do outro lado por causa de suas sombras e de sua escuridão”.

Oscar_Wilde_by_Napoleon_SaronyMas, de repente, o sol se apaga. Os tribunais, que solicitou, o condenam. O mundo para o qual vivia descobre-lhe de repente seu verdadeiro rosto, abjeto por força de tamanha mediocridade, e lança-se à sua caça. Do dia para a noite, ei-lo, em nome do escândalo, escandalosamente perseguido. Ainda sem saber exatamente o que aconteceu, Wilde desperta naquela cela, vestido de estopa e tratado como escravo. Quem irá socorrê-lo? Se a vida brilhante é a única realidade, então foi a realidade, sob as vestes de seu meio, que o jogou na cela. Se só é possível viver do lado ensolarado da floresta, então Wilde deverá morrer na sombra fedorenta onde se desespera. Mas o homem não é feito para morrer e por isso ele é maior do que a noite. Wilde escolhe viver, embora viva no sofrimento, porque no próprio sofrimento descobre motivos para durar. “Sabe”, diz a Gide muito depois, “que foi a compaixão que me impediu de me matar”?

A única compaixão que pode tocar aquele que sofre não pode vir do privilegiado: vem daquele que sofre ao mesmo tempo que ele. No pátio da cadeia, um prisioneiro desconhecido, que até então jamais falara com Wilde e que andava atrás dele, murmura-lhe de repente: “Oscar Wilde, tenho pena de vós, porque deveis sofrer mais do que nós”. E Wilde, emocionado, disse-lhe que não, que todos naquele lugar sofriam igualmente.
Wilde descobre que seus irmãos não são aqueles que moram no Ritz, e sim o homem que, durante o passeio dos condenados, caminha à sua frente murmurando palavras sem sentido, e este outro que irá ditar-lhe a A balada da prisão de Reading e cujos passos travados mesclam-se a outros passos, na madrugada, nos corredores da prisão. “Não existe”, escreve então ao mais frívolo de seus amigos, “um único ser infeliz trancado comigo neste lugar miserável que não se encontre numa relação simbólica com o segredo da vida”.

Wilde reconhece que, por ter desejado separar a arte da dor, cortava uma de suas raízes e retirara de si mesmo a verdadeira vida. Para melhor servir à beleza, desejou colocá-la acima do mundo, e contudo, sob seu uniforme de preso, reconhece ter rebaixado sua arte abaixo dos homens, já que esta arte não podia trazer nada àquele que era privado de tudo. Não há nada em Salomé ou em Dorian Gray que possa ser encontrado no coração de um condenado às galés. Mas existe no Rei Lear, de Shakespeare, ou em Guerra e paz, de Tolstói, um sofrimento e uma felicidade que podem ser reconhecidos por aqueles que choram ou se revoltam em nossas ignóbeis casas da dor. Quando Wilde lavava o chão de sua cela, com suas mãos que só ferira até então ao contato de flores raras, nada do que escrevera podia socorrê-lo, nada do que fora escrito sob o sol, a não ser o grande grito em que o gênio faz resplandecer a infelicidade de todos. Nem suas frases enfeitadas nem seus contos sutis podiam então ajudá-lo.

Por isso Sófocles (dramaturgo grego, um dos mais importantes escritores de tragédia, 497 ou 496 a.C) era um criador que Wilde, até então, não era. Em sua mais alta encarnação, o gênio é aquele que cria para que seja honrado, aos olhos de todos e a seus próprios olhos, o último dos miseráveis no fundo da cela mais escura. Por que criar se não for para dar um sentido ao sofrimento, nem que seja para dizer que ele é inadmissível? A beleza surge neste momento de escombros da injustiça e do mal. O fim supremo da arte é então confundir os juízes, suprimir toda acusação e tudo justificar, a vida e os homens, em uma luz que não é a da beleza porque é a da verdade.

A arte que recusa a verdade de todos os dias perde a vida. Mas a vida que lhe é necessário não pode ser suficiente. Se o artista não pode recusar a realidade, é porque sua tarefa é dar a ela uma justificativa mais elevada. É por isso que, ao sair de sua prisão, Wilde, esgotado, não encontrou força a não ser a de escrever esta admirável A balada da prisão de Reading e fazer ressoar novamente os gritos que foram lançados uma certa manhã de todas as celas de Reading para sustentar o grito do prisioneiro que homens de fraque estavam enforcando. A única coisa no mundo que poderia despertar seu interesse eram seus irmãos de sofrimento e, entre eles, aquele que era vergonhosamente supliciado em nome da decência. Nas últimas frases de De Profundis, Wilde jurara para si mesmo que daí em diante sempre identificaria a arte com a dor. A balada da prisão de Reading iria cumprir esta promessa, encerrando assim o itinerário vertiginoso que o levava da arte dos salões, onde todos só escutam a si mesmos nos outros, à arte das prisões, onde todas as celas lançam o mesmo grito de agonia que nasce do homem assassinado por seus semelhantes.

Quando se trata daqueles que, devido ao nascimento ou à inclinação, conseguem apenas ter uma idéia horrível da felicidade, segundo a expressão de Saint-Just, então a dor é, para eles, uma das faces da verdade, embora seja a menos nobre; e a verdade do escravo vale mais do que a mentira do senhor. A grande alma de Wilde, elevada acima da vaidade pelo sofrimento, aspirava contudo àquela felicidade orgulhosa que lhe restava encontrar para além da infelicidade. “Depois”, dizia Wilde, “precisarei aprender a ser feliz”. Não o foi. O esforço em direção à verdade, a simples resistência a tudo que, na cadeia, arrasta o homem para baixo, bastam para exaurir a alma. Wilde não produziu mais nada depois da A balada da prisão de Reading, e conheceu sem dúvida a indizível infelicidade do artista que conhece os caminhos do gênio, mas que não tem mais forças para segui-lo. A miséria, a hostilidade ou a indiferença fizeram o resto. O mundo para o qual vivera deve ter sentido que acabava de ser julgado para sempre por um prisioneiro e julgado pelo que era.

E, julgando a si mesmo uma segunda vez, aquele mundo condenou de novo o poeta, não pelo vício de ter sido superficial, e sim pela impertinência de ter sido infeliz. Até mesmo Gide confessa que se sentiu incomodado ao encontrar Wilde em Paris, quando este carecia de recursos e não escrevia mais. Sem dúvida, Gide não soube escondê-lo bem, já que Wilde foi forçado a dizer-lhe a seguinte frase, que dá vontade de tê-lo de novo entre nós: “Não é preciso se interessar por alguém que foi fulminado”. Naquele momento, Wilde, miserável, solitário, doravante estéril, sonhando por vezes em voltar a Londres para ser de novo “o rei da vida”, deve ter pensado que perdera tudo, até mesmo a verdade que lhe aparecera em um pátio de cadeia. Estava errado, contudo. Deixava-nos uma herança real, De Profundis e A balada da prisão de Reading. Morreu bem perto de nós, em uma destas ruas da rive gauche onde a arte e o trabalho confraternizam-se nas mesmas dificuldades.

Mas o fato de que seu pobre enterro tenha sido acompanhado pelo povo da rua Beaux-Arts, no lugar de seus brilhantes amigos de outrora, dava justamente o testemunho de sua nobreza recente e anunciava aos iniciados que um grande artista, nascido havia pouco, acabava de morrer.

Notas:

Trechos do ensaio O Artista na prisão escrito por Albert Camus sobre Oscar Wilde. Falaize, editor, 1952. Reeditado por Arts, de 19 a 25 de dezembro de 1952.

CAMUS, A. A Inteligência e o Cadafalso. Tradução: Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Record, 1998.

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Marcelo Vinicius é escritor e fotógrafo, autor do livro "Minha Querida Aline" (Editora Multifoco). Colunista do portal Homo Literatus e editor da Revista Sísifo. É amante da arte, especialmente a fotografia, o cinema e a literatura. Graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na qual faz parte da equipe editorial da revista de Filosofia IDEAÇÃO-UEFS, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF); é integrante do grupo de estudos em Filosofia da Arte e do grupo de pesquisas em Filosofia Contemporânea na UEFS. É certificado pelo curso de fotografia do Cento Universitário de Cultura e Arte (CUCA) e teve suas fotografias selecionadas por diversos festivais. Participou de jornais regionais, do projeto de extensão sobre cinema e produção de subjetividade e do projeto de Psicologia Social na UEFS. Foi responsável também por coordenar projetos acadêmicos sobre os escritores Franz Kafka e Fiódor Dostoiévski, ainda co-coordenou projetos sobre os cineastas Bergman e Hitchcock e apresentou o tema “A relação entre o escritor Dostoiévski e o cineasta Hitchcock em Festim Diabólico”, na II Mostra 100 Anos de Cinema: Alfred Hitchcock.

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