Literatura e decadência em Às avessas

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Às avessas (1884) é um romance do escritor e crítico de arte Joris-Karl Huysmans (1848-1907), nascido de pai holandês e mãe francesa. Apesar de ser uma obra pouco conhecida entre o público leitor brasileiro, pode ser considerada um verdadeiro divisor de águas em termos de literatura moderna. Esse livro constitui um tratado sobre as relações estreitas que existem entre o refinamento dos sentidos e a melancolia. As temáticas do tédio, da nevrose e do comportamento histérico que entranham as páginas desse romance podem fornecer uma ideia da atmosfera opressora respirada pelos habitantes dos grandes centros industriais europeus do século XIX.

O protagonista de Às avessas chama-se Des Essentes. Trata-se de um herdeiro da velha aristocracia francesa que, habitando uma luxuosa mansão, passa o tempo a divagar sobre literatura latina, a psicologia das cores, o aroma das flores e a composição dos perfumes e das artes. Esse personagem incorpora a mentalidade de que a modernidade industrial era uma época inóspita, vulgar e humilhante para os artistas. Na verdade, essas reflexões estavam na ordem do dia entre os literatos, filósofos e pintores franceses, ocorrendo também nos salões e cafés que Huysmans frequentou ao lado de nomes como Émile Zola e Paul Bourget.

Ao contemplar a galeria de quadros com o busto de seus antepassados nas paredes da mansão que habita, Des Essentes conclui que “faltavam retratos de seus descendentes; havia um hiato na fileira de rostos da raça; uma única tela servia de intermediário, de ponto de sutura entre o passado e o presente” (p. 33).  Esse trecho ilustra bem a noção de que o termo decadência, na literatura, foi inspirado nos suspiros finais da aristocracia europeia. Apesar da imponência das pinturas que retratam os patriarcas da família de Des Essentes, essa nobreza não teria mais continuidade no final do século XIX.

capa a reboursA decadência era o signo característico desse novo burguês, com raízes fincadas na aristocracia. O dândi, encarnado pelo protagonista de Às avessas e também pelo personagem Dorian Gray, do inglês Oscar Wilde, é um indivíduo sempre em franco desajuste com os valores da época em que vive. Nesses termos, tanto os bravos e antigos cavaleiros medievais se tornaram “velhos catarrentos a repisar insípidos discursos” (p. 35), bem como os doutrinários da burguesia não passavam de “ávidos e descarados puritanos” cuja educação é considerada por Des Essentes “inferior à do sapateiro da esquina” (p. 36).

O tédio que tanto incomoda Des Essentes se manifesta também na forma de um comportamento antissocial. Sobre as reflexões feitas por Huysmans em torno da pintura em seu romance, prevalece a assertiva de que saber entender o significado das cores seria uma característica do verdadeiro artista.

O que prevalece nesse primeiro instante do romance é que o homem letrado e refinado estaria em franco desajuste tanto em relação ao povo, quanto em relação às elites. Ao contrário do naturalismo de Zola ou do realismo de Victor Hugo, Huysmans pouco se importava com a possibilidade de transformar o cotidiano rústico dos trabalhadores em temática literária. A interpretação do quadro Salomé, de Gustave Moreau, é bastante eloquente. Para Des Essentes, era necessário macular as imagens sacras do Renascimento com a presença de elementos profanos; eróticos. Essa forma de pensar ilustra bem o controverso ideal de beleza da corrente decadentista.

Sobre suas predileções literárias, Des Essentes é um amante incondicional da poesia e prosa de Charles Baudelaire e possui uma grande ojeriza pelos clássicos do Iluminismo, como Voltaire, Rousseau e Diderot. Esse personagem é fascinado pela baixa literatura do século XIX: aquela literatura, regada com bastante erotismo, que colocava sacerdotes e nobres em situações escandalosas. Romances como O padre casado, As diabólicas e as obras do Marquês de Sade eram portadoras de um satanismo literário muito sedutor para Des Essentes. O decadente se deleita em louvar “a polução do culto e a orgia carnal” (p. 191) ao invés dos credos cristãos.

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Joris-Karl Huysmans (1848-1907)

Em As vozes da liberdade: os escritores engajados do século XIX, o historiador Michael Winock, professor da École de Sciences Politiques, na França, afirma que a noção literária de decadência serviu para municiar os argumentos dos intelectuais conservadores e católicos. Esses pensadores passaram a deduzir que esse mal-estar representado por Huysmans era resultado da queda do monarquismo e do implante da República. Por outro lado, foi útil também para escritores militantes de causas humanitárias para os quais essa literatura era também capaz de “apreender tudo o que a sociedade esconde de vileza, de vulgaridade, de vício nas diversas camadas sociais” (p. 751).

Essa oscilação nas interpretações de Às avessas condiz com a própria consciência dilacerada de Des Essentes. No final do romance, temos esse personagem afirmando ser um cristão que duvida ou um incrédulo que desejaria crer. As contradições filosóficas admitidas por Des Essentes e a decisão de J. K. Huysmans de se enclausurar em um mosteiro católico, tempos depois do lançamento do romance, sem dúvidas, caracterizam o fim do século XIX enquanto uma época favorável para a germinação de todo tipo de dilemas morais e políticos.

 

Obras citadas:

 

HUYSMANS, J. –K. Às avessas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

 

WINOCK, Michael. As vozes da liberdade: os escritores engajados do século XIX. Tradução de Eloa Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

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