O que representam as marcas de oralidade em ‘Quarto de despejo’?

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O que representam as marcas de oralidade em ‘Quarto de despejo’?
Carolina e seu Diário

O diário de Carolina Maria de Jesus é repleto de marcas de oralidade que representam o mundo no qual ela viveu; desse modo, o contexto social da favela é explicitado por meio da linguagem

Carolina de Jesus (1)
Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, onde viveu até lançar “Quarto de despejo”

Este texto pretende investigar, de forma breve, as marcas de oralidade presentes na narrativa de Quarto de despejo: diário de uma favelada (2007), de Carolina Maria de Jesus. Além disso, tem como objetivo discutir o que representa e evidencia a presença da oralidade na obra.

De forma bastante sucinta, o livro de Carolina Maria de Jesus, lançado em 1992, é um diário escrito na década de 1950 e conta a dura realidade dos favelados de Canindé e dos seus costumes, sobretudo a história da própria escritora e o cotidiano miserável de sua condição: uma mulher negra, pobre, mãe, escritora, favelada e uma catadora de papel e de outras sucatas. Este diário relata e denuncia a violência, miséria e fome – bem como a dificuldade para se ter o que comer.

Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, que na época foi encarregado de escrever uma matéria sobre a favela próxima à beira do Rio Tietê, no bairro do Canindé. Em função disso, Dantas conheceu Carolina e percebeu que ela tinha muito a dizer. A autora, em 20 cadernos encardidos, escreveu a história da favela. Cadernos estes que ela encontrou enquanto buscava de sustento para seus três filhos. Como o próprio jornalista declara: “repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”.

O mais importante, aqui para essa questão, é que o livro conserva a escrita de Carolina, sua sintaxe, seu discurso. Audálio Dantas apenas alterou algumas vírgulas e palavras que seriam incompreensíveis aos leitores do diário de Carolina. Além disso, cortou excesso de repetições de certas situações, porque assim a leitura do diário não é cansativa. Desse modo, todo o romance é permeado pela linguagem oral da escritora. Tais marcas explicitam o cotidiano da escritora, bem como seu meio social, as suas vivências e suas angustias.

Carolina Maria de Jesus

No que compete ao estudo da oralidade em Quarto de Despejo, isto é, estudo sobre o estabelecimento das relações entre fala e escrita presentes na obra, faz-se necessário mencionar qual é a sua importância e relevância, uma vez que a literatura é composta por palavras escritas. De acordo com Frederico Augusto Garcia Fernandes, em Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil (2013), compreender a importância das marcas de oralidade “[…] corresponde também a dar um tratamento diferenciado ao que se entende por literário” (p. xii). Ao trabalharmos com a voz oral, “[…] a literatura deixa de ser captada pelo seu sentido etimológico de littera (letra), ou seja, tudo o que está escrito, e passa a ser entendida lato sensu como cultura.” (p. xii). Nesse sentido, a literatura figura, segundo ele, como uma arte do cotidiano, ou seja, passa a ser requisitada pelas mais distintas manifestações e ocorrências no dia a dia, tais como “[…] contações de causos, das cantigas entoadas, despretensiosamente, durante as lidas domésticas ou nas mais variadas profissões.” (p. xii).

Em Quarto de despejo, é evidente “o uso expressivo de vocábulos e expressões advindos da língua falada popular” (MELO, 2014, p. 17), isto é, as marcas de oralidade são explícitas, porém não são propositais, pelo contrário: são espontâneas.  Carolina queria projetar, em seu diários, a imagem de uma escritora culta, que tinha conhecimento da língua que falava, fazendo questão de usar palavras raras. No entanto, a linguagem de seu cotidiano salta em suas páginas, são marcas linguísticas, próprias da fala popular, não coloquiais e cultas, que representam seu dia a dia. Isto acaba por dar um ar de particularidade a sua narrativa, pois enquanto protagonista-narradora “deixa suas marcas pessoais e procura imbricar a escrita com a realidade, a fim de firmar um pacto de veracidade” (MELO, 2014, p. 34) de sua história.

Exponho, aqui, seis marcas de oralidade presentes no diário de Carolina – ao longo do diário, há várias dessas marcas, portanto, aqui é feito apenas um pequeno recorte –, marcas que serão destacadas em negrito para melhor visualização e depois explicadas/exploradas abaixo:

Trecho 1. “Muito inteligente. Mas não tem iducação. É um político de cortiço. Que gosta de intriga. Um agitador.” (JESUS, 2007, p. 15).  Neste trecho, temos a marca “iducação” (educação), esta palavra não pode ser vista como um erro de escrita, mas como uma marca de oralidade, decorrente de um dialeto social popular, comumente utilizado pelas classes menos prestigiadas socialmente, devido a suas origens e escolaridade (o que não significa que alguém com formação acadêmica ou com situação financeira privilegiada não fale assim)

Trecho 2. “Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas” (JESUS, 2007, p. 16). Em “Elas alude” (Elas aludem), o sujeito está flexionado no plural, mas o verbo não está mantido no plural. Essa ausência de plural acontece ao longo de todo o livro, o que dá a entender que Carolina, embora se esforçasse, não tinha domínio da norma padrão da língua portuguesa, privilegiada pela sociedade, possivelmente em razão de sua baixa escolaridade e por causa da influência do meio em que vive, seu contexto de produção do diário: a favela;

Trecho 3. “Comecei a escrever o que observava daquela agromeração.” (JESUS, 2007, p. 69). Este é outro traço da língua falada, marca de oralidade. A troca do “l” pelo “r” é comum na oralidade, principalmente por aqueles que não têm total domínio da norma padrão. Também é comum em diversos contextos sociais de fala, sobretudo nos locais onde encontram-se os mais carentes, tanto de estudo quanto de alimentos, água, semelhante ao qual se encontrava Carolina Maria de Jesus;

Carolina e seu Diário

Trecho 4 e 5: “Vieram queixar-se que a Zefa brigou com uma nortista e discutiram. […] A Zefa é mulata. É bonita. É uma pena não saber ler.”; “Eu estava preparando para ir no circo quando ouvi rumores que o Anselmo havia atirado no João Coque.” (JESUS, 2007, p. 109). Tanto “Zefa” quanto João “Coque” são formas de chamar as pessoas, tratam-se de modos informais de denominar pessoas utilizados pela escritora, que demonstram um aspecto oral na escrita, isto é, esses “chamamentos” dão a língua escrita um traço de língua falada;

Trecho 6: “Vi o Zé Povinho Briga é um espetáculo que eles não perdem.” (JESUS, 2007, p. 102). “Zé povinho” é um termo utilizado para denominar pessoas reles, sem importância e comuns, nesse contexto especificamente serve para denominar aqueles moradores da favela como se fossem da plebe e do populacho, loucos para acompanhar qualquer briga e confusão onde moram.

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De modo geral, as palavras/termos que são utilizados pela escritora e representam marcas de oralidade em seu texto literário explicitam e reforçam a veracidade de seus relatos no diário, pois tais palavras são comuns no contexto social que vivenciou, sua linguagem reflete seu estado social desprivilegiado, isto é, sua linguagem reflete suas vivências no dia a dia da favela e sua condição enquanto ser humano. Suas escolhas de palavras são responsáveis por projetar a própria Carolina Maria de Jesus, enquanto sujeito, na narrativa.

Referências

FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (org.). Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2013.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2007, (Sinal Aberto).

MELO, Pedro da Silva de. Carolina Maria de Jesus e a paixão pela escrita: um estudo sociolinguístico de Quarto de Despejo. 2014. 172 f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

SANTOS, Estela. Quarto de despejo – Diário de uma favelada: a escrita como válvula de escape.

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