Os períodos secretos de Marguerite Duras em “O amante”

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“Tudo começou assim na minha vida, com esse rosto visionário, extenuado, as olheiras antecipando-se ao tempo, à experiência”. (DURAS, 1985, pag. 13)

 

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Marguerite Duras

Comecemos definindo O amante, se é que é possível defini-lo realmente: um livro de uma vasta profundidade humana, o sumo das experiências de uma vida intensa, um livro extremamente denso e, sobretudo, estranho. Trata-se do livro que deu a Marguerite Duras o Prêmio Goncourt, na França, em 1984.

Para narrar a história, a autora parte de uma observação sobre seu rosto, atualmente: “Tenho um rosto dilacerado por rugas secas e profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas de traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Destruído” (DURAS, 1985, p.8). Após a observação, Duras estabelece as origens de uma menina branca de quinze anos e tenta identificar traços entre a personagem na adolescência e na vida adulta.

Duras, logo de início, tenta definir seu livro — que perpassa entre 1932 e 1949, em Saigon, época relativa à sua adolescência, mas que se estende à vida adulta, em Paris — e nos situar.

[…] A história de uma pequena parte de minha juventude, já escrevi mais ou menos, quero dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte, a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido, antes falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui falo dos períodos secretos dessa mesma juventude, das coisas que ocultei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos. (DURAS, 1985, p.12.)

E o que seriam os períodos secretos? Esta obra de Marguerite Duras, considerada autobiográfica, narra a sua iniciação sexual, aos quinze anos e meio, com um chinês rico de Saigon, doze anos mais velho que ela. A obra apresenta diversos encontros da menina branca com o amante chinês, são momentos intensamente prazerosos e tristes. No entanto, não sabemos se as personagens são reais e até que ponto os fatos são reais. A escrita transcende, é impossível saber se a história é verídica, de fato. Duras fala de si mesmo, mas como se estivesse falando de uma personagem qualquer.

livro-o-amante-marguerite-duras_MLB-O-3516638220_122012A família da jovem, no romance, figura entre o amor e ódio, entre a miséria material e riqueza afetiva. Os membros da família constituem uma existência trágica e triste: a presença da mãe louca; o irmão mais velho, cruel, oportunista e ladrão; o irmão mais novo, frágil e oprimido. Situam-se entre a desgraça financeira e a desgraça moral.

Ler o livro é como ver uma série de imagens incrivelmente belas e, também, dolorosas. Somos tomados pelos fluxos de memória e sentimentos contraditórios da obra. A autora comenta episódios intensos do relacionamento com seu amante, no entanto, de maneira contida e lacunar.

O amante nos leva a um inquietante questionamento: por que, afinal, retomar essa história depois de tantos anos? Possivelmente, pelo fato que a relação tem grande importância pra sua vida, a relação despertou nela a consciência do poder em suas mais variadas formas, a paixão permitia que ela conseguisse o que queria do amante: dinheiro, presentes, jantares e cuidados.

Em O amante, Marguerite Duras relata uma estranha relação sexual, uma estranha primeira experiência, retrata imagens belas e fortemente tristes, passagens curtas e até mesmo fragmentadas. A memória é traiçoeira? É aí que a ficção nos dá a liberdade de escolher o que tomaremos como verdade.

Referência:

DURAS, Marguerite. O amante. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Págs. 52-53.

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Sugestão cinematográfica:

O Amante (L’amant), 1992. Dirigido por Jean-Jacques Annaud.

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