Tudo azul de bolinhas brancas: Tércia Montenegro em romance adulto

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Considerações sobre o romance Turismo para cegos, de Tércia Montegro.

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Antes de tudo é preciso dizer que a escritora conseguiu, creio que por ser o romance de estreia atentou para a questão (inclusive sinalizada por mim em crítica ao seu livro de contos anterior), imprimir uma linguagem direcionada ao público adulto, sem resvalar, como nas obras passadas, em diretrizes juvenis.

Feito conseguido, elementos como gatos, personagens artistas, músicos, o litoral cearense e a cidade de Fortaleza como cenários continuam perseguindo a escritora de maneira quase inconsciente, o que é saudável, pois está prestes a se livrar deles; quem sabe no próximo romance não estejam mais lá. Os gatos, grande paixão da autora, só aparecem em forma de um objeto de arte aparentemente feito para eles: “Um arranhador para gatos em forma de torre, com intervenções fotográficas.” No mais são trocados por um cão guia, importante antagonista.

As primeiras partes trazem sequências de acontecimentos banais. O que se destaca é a descrição das pescarias do pai da protagonista, das famílias reunidas para pescar com mulheres gordas enfiadas em bermudas cáqui.

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Turismo para cegos (Companhia das Letras, 2015)

Os acontecimentos banais incomodam, prologam-se como cenas de telenovelas feitas somente para preencher a grade. Há costuras na narração que podemos chamar de toscas, já que ligam a continuidade do enredo com termos como “dimensões cósmicas”. Expressões como essas ligam o reencontro da protagonista com o colega de infância, através do filho do tal amigo. Fica claro o intuito de nomear os capítulos – vou me estender na questão dos títulos mais pra frente – de forma “desproposital”, não revelando nunca o fulcro: o reencontro chama-se “O nado”, quando o óbvio seria chamar-se “Sávio”, nome do amigo. Pode-se também entender os títulos desencontrados como uma antevisão do que virá depois, ou do que veio antes.

Os capítulos em geral são curtos e alguns não convencem, como no caso de “O inventário”, a primeira vez que aparece; há outro com o mesmo nome que não é tão fraco.

É também preciso dizer que a narração adulta, embora de qualidade, se perde muitas vezes em arrodeios, divagações e poética que não se sustenta. Eis o problema do primeiro “O inventário”, a prosa poética é morna. A autora dosou metade de poesia, com metade de prosa. E em se tratando de prosa poética, a prosa deve prevalecer.

Comparar capítulos de romances com contos que funcionam isolados não é de hoje. Vários romances, não é o caso de enumerar, trazem partes que são histórias dentro da história maior. Tércia usou do expediente, vinha sinalizando isso no livro anterior, O tempo em estado sólido, de contos. Um exemplo emblemático é “Como nascem as cachoeiras” (primeira aparição). Fato é que os títulos só funcionam isolados.

Como dito o livro tem linguagem marcadamente adulta, porém, há muito de infantil na personagem central, a deficiente visual Laila. Resta-se saber se é proposital. Não creio. A personagem diz obviedades como se fossem sabedorias, prova do estado juvenil.

Voltando a carga dos títulos, alguns se repetem – mostra da dificuldade em trabalhar com eles – não resolvendo a questão. Melhor seria não trazer títulos.

Os títulos são realmente desencontrados. Por exemplo: na segunda vez que a nomenclatura “O amor” aparece, o texto nada reflete sobre o tema. Ao contrário, discorre apenas sobre o modo distante que Laila, a protagonista cega, trata seu cão guia. Tércia faz isso de maneira intencional? A ideia é revelar o contraponto: a ausência do amor onde deveria existir?

A parte “O constrangimento” (primeira aparição), maior que a maioria, é a melhor, com imagens bem tecidas.

Pouco depois do meio do livro, Pierre, o protagonista masculino, convida colegas de trabalho para um jantar com sua namorada Laila. Essa parte da história parece um pouco forçada. O convite não segue nenhuma sequência lógica de continuidade, é unicamente uma brecha para empurrar narração e retórica e conduzir o romance rumo ao desfecho. A cena do jantar, apesar de bem descrita, não entusiasma. Talvez pela descontinuidade, pelo previsível.

Alguns capítulos não passam de enxertos para o volume. Exemplos: “O boneco” (na segunda aparição), “O invólucro” e “As grandezas” (primeira aparição).

Assinalei a qualidade de “O constrangimento”, saliento a qualidade de “A visitante”, sua limpeza de detalhes.

É consenso que o desfecho dos romances seja a sequência de maior apuro literário. Tércia sabe disso, e é o que faz; abusa da técnica.

A autora usa muito esmero técnico de escrita no final, em contrapartida, é pouco criativa: a reaproximação de Laila com Bent, um artista que a cega desprezava no começo, é artificial. A forma de reaproximação demasiada poética, por isso patética, não agrada.

O que incomoda mesmo é o desencontro dos títulos, a não relação enunciado-contexto. Exemplo desses incômodos é a segunda aparição de “Como nascem as cachoeiras”; não há em absoluto nada que o ligue ao contexto. O mesmo vale para “O afogamento” (terceira aparição).

São três os personagens centrais, os citados Laila e Pierre, e uma vendedora de Pet Shop. No desfecho a vendedora assume a cena e Laila desaparece; não somente assume a ação, como idealiza ser cega, ser a outra. É a personagem mais interessante do enredo, e até se espera muito dela, que não corresponde, deixa a dever.

O desfecho prolonga-se em digressões e apuro técnico. E a técnica é a riqueza da história, o que nos faz prosseguir lendo um romance razoável, onde tudo parece estar elegantemente vestido de azul com bolinhas brancas.

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