A escolha de obras célebres da literatura passa por uma valorização social que visa a discriminação de públicos-alvo
Quando falamos em grandes clássicos da literatura mundial os grandes autores vêm logo em nossas mentes. Ao definirmos um cânone literário, ou seja, um grupo de obras de referência quando o assunto é literatura, pensamos nos títulos que marcaram a história da arte, como Romeu e Julieta, Macbeth, Dom Casmurro, Ulysses, Orgulho e Preconceito, A Odisseia, etc. A curiosidade é que todas essas obras são de séculos bastante antigos e, em sua grande maioria, retratam valores de uma época que hoje parece distante. Com o passar dos anos, a impressão que fica para quem aprecia a literatura é que houve uma estagnação quanto à qualidade das obras escritas nos dias atuais. Logo, a saída é buscar títulos antigos para saborear uma boa leitura. Mas afinal, por que é tão difícil que um livro seja considerado clássico? O que há nos livros e autores considerados clássicos que os diferencia dos demais?
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Em seu livro Teoria da Literatura: uma introdução, o filósofo e crítico literário Terry Eagleton abre o título com uma reflexão bastante interessante sobre “O que é literatura?”. Durante todo o primeiro capítulo Terry se ocupa em tentar definir a literatura passando pelas mais diversas formas, desde caracterizá-la pela beleza intrínseca a sua estrutura até a separação entre ficção e realidade. A definição que o autor se pega, porém, gira em torno da valorização ou não de uma obra literária. Para Eagleton, a literatura é um exercício simbiótico entre a própria obra e a utilização que a sociedade faz desta. Assim, cabe aos indivíduos atribuir ou não valor literário aos textos e eleger, dentre os que são considerados literatura, os grandes clássicos. Para tal julgamento há uma série de fatores que são levados em conta. Os aspectos socioculturais influenciam diretamente na seleção dessas obras a serem cultuadas, uma vez que o tipo de título que será privilegiado nessa separação deverá privilegiar a visão dominante da sociedade, já que estes são os que regulam as relações sociais de desigualdade e utilizam-se de mecanismos como a linguagem e a arte para aumentar as disparidades a seu favor.
Um exemplo de sacralização interessante pode ser observado na escolha de Machado de Assis como o grande nome da literatura brasileira. Para além da qualidade extraordinária de Machado na escrita há um interesse ideológico relevante para a opção de colocá-lo em tal posição. Como é de largo conhecimento de todos, Machado era um mulato de origem pobre e simples. Conforme seu repertório literário expandiu-se houve uma mudança na sua representação visual para o público. Nos relatos de épocas em que o gênio literário já possuía algum alcance no mundo das artes é possível notar uma espécie de “embranquecimento” do autor, uma vez que não era de interesse da classe dominante da época expor para o mundo um escritor de renome que fosse considerado mulato, cor predominante de escravos e trabalhadores braçais. Assim, há uma relação direta entre a valorização de suas obras e a imagem que sua pessoa transmitiria para o mundo, exemplificando a definição de literatura dada por Eagleton.
Assim, podemos observar que a composição de um cânone literário vai muito além do julgamento de qualidade das obras. Afinal, esse parâmetro pode tornar-se um pouco falho na maioria das situações pelo caráter subjetivo que carrega, uma vez que a determinação da beleza ou não do texto cabe ao julgamento individual do leitor, que carrega valores próprios de sua experiência de vida que influenciam diretamente na forma como a leitura de determinado título vá ser redigida. A escolha de obras célebres da literatura passa por uma valorização social que visa a discriminação de públicos-alvo a fim de clarear e distanciar ainda mais as classes hegemônicas das classes populares.