Assim no Sul, ou uma obra fora do tempo

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Em Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz, tudo está de cabeça pra baixo no que diz respeito a alma da narrativa, desde a epígrafe, um verso de T.S. Eliot.

Uma obra fora do tempo. Uma obra de tempo próprio e que nos sujeita a ele. Uma obra sobre a incoerência e inquietação humana. Uma obra sobre um caminho feito por coisa alguma. Um soco no estômago, uma vertigem. É difícil definir de forma precisa Assim na terra, romance do gaúcho Luiz Sérgio Metz ou Jacaré ou Jaca, seus apelidos de infância.

Em Assim na terra, tudo está de cabeça pra baixo no que diz respeito a alma da narrativa. A obra é enigmática. Uma narrativa densa, e de tão densa: dolorosa; uma narrativa elaborada de modo criativo, repleta de detalhes do universo rural do sul, paisagens e silêncios; de uma linguagem, claramente, vanguardista.

Logo na epígrafe isso é notável, trata-se de um melancólico verso de T.S. Eliot: “Leio, quase toda a noite, / e no inverno vou ao sul”. É comum que um inglês, no inverno, vá ao sul em busca de calor, mas estranho é que um escritor do sul do Brasil, no inverno, vá mais ao sul ainda, pois o que encontraria nada mais é que demasiado frio. Difícil dizer o motivo que levou Metz a escolher tais versos, pois, infelizmente, faleceu no ano seguinte da publicação de Assim na terra, em 1996, em Porto Alegre. O escritor nunca mencionou nada a respeito da escolha da epígrafe.

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Luiz Sérgio Metz

Na obra, um homem não nomeado percorre caminhos também não nomeados, passa por rotas ancestrais do pampa gaúcho, entre matas e beiras de estrada. Uma busca por suas origens, entre os desvios de memória, o delírio, o raciocínio e pelo poder da linguagem. Nessa busca pelo o não se sabe realmente o que, encontra Gomercindo, que o leva ao Pensário, seu galpão surreal semelhante a uma caverna platônica. Um galpão bem pensado e bem arquitetado onde ambos passam um bom tempo entre diálogos, inquietações, lembranças, sombras, anotações, luz de velas, luar e gavetas vazias de uma escrivaninha. Gomercindo, após um tempo,  propõe ao jovem uma andança, a fim de decifrar as suas experiências de vida e recriá-las ao longo do percurso que vão fazer. Proclamam um pacto: continuar nas sombras, avançar o caminho com venda nos olhos, até quando possam aguentar.

Não se sabe em busca do que o jovem e Gomercindo estão. O romance não nos relata nada nítido a respeito. Os leitores se arriscam a descobrir algo novo a cada nova página. A narrativa é repleta de frases poéticas, o que corrobora para uma degustação literária. O delírio e as reflexões das personagens são acompanhados de ritmo e sonoridade. Trata-se de um profundo mergulho na tradição do sul do país. Com o livro, Jacaré abre um infinito horizonte na literatura sulista do Brasil.

A impressão que fica para nós, leitores, é que trata-se de uma busca pela paz e a quietude nunca alcançada pelos homens. Uma busca por um novo mundo, um mundo reinventado que nos deixe felizes por alguns anos ou instantes. A busca da perda do medo de seguir nossos caminhos, seja lá o que nos espera. Uma busca por viver a própria vida e não a do outro. Uma busca pela religião do tempo, que deve nos guiar pelos trilhos da aceitação de quem somos, embora nunca saibamos quem realmente somos; uma busca pela saturação da memória de verdade própria, tudo isso em meio às paisagens do sul. Vejam o belíssimo trecho lírico com que Metz nos agracia (trata-se de uma fala de Gomercindo):

— Homem nenhum tem ou teve paz — disse depois. — Não há um ser humano que conheceu a si ou alguém, ou dominou alguém e a si mesmo. Procedemos e processamos e passamos a proceder e a processar. Esse é o desafio. Inventamos uma invenção que nos inventa, ficamos alguns instantes felizes com isso. Logo o mundo acaba e vamos novamente buscar onde não há, mas pode haver.  Dependemos do medo pra prosseguir e do medo pra estancar uma procura exaustiva. Quando chegamos à plena alienação aí sim só trabalhamos o medo, e temos uns instantes de paz quanto maior ele for. É a hora de construir hospitais e cassinos e toda a rede necessária aos seus funcionamentos. Uns são seres sem retorno e outros só de retorno. Muitos erigem sistemas tentando se safar e justificar estarem vivendo a vida de um outro para poderem se suportar. Aí mais se inventam e se infectam de estranhos, que julgamos nascerem de outra pipa, farinha de outro trigo, carne de outras esferas, esferas de um outro mundo cuja chave vamos procurando. Nossa infância está vencida e mesmo assim nos contagia. A maior religião do nosso tempo é a que nos propõe um retorno. Diz que a meta está no começo, a salvação é a aceitação. Ela constrói um tempo sem utopia e sem esperança fora da recordação, ela se propõe a educar os cinco sentidos para a lembrança. Ela não admite o recém-homem, o que veio à luz no trilho pantanoso de uma noite irretomável, instantânea. O olho da tormenta está em todos nós, antes e depois das classificações e dos sistemas. O meio do homem nasce fora dele e dentro dele, e se fora dele está seu fim, dentro deve estar seu começo. (Pág. 149-150)

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Em Assim na terra estamos no Sul. Nos pés do planeta. Estamos no Sul dramático, inquieto, mas silencioso. No sul visceral, vertiginoso. O Sul de terra vermelha e de paisagens mil. O Sul de Metz, o nosso Sul, onde, muitas vezes, as coisas são feitas no sobressalto, a ação e o sonho andam juntos, unem-se, confundem-se, sem sequer pensar em limites. O belo e tão admirado Sul, de começos no fim, de fins no começo.

Assim na terra
Luiz Sérgio Metz
Cosac Naify
224 Páginas
2013 (1ª ed. – 1995)

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