O livro A personagem, de Beth Brait, apresenta um estudo sobre os seres fictícios da literatura e traz o depoimento de escritores brasileiros sobre o assunto
Um bom personagem pode configurar a diferença entre um best-seller e um livro que apenas enfeita a estante de uma biblioteca. Parece exagero, mas a opinião de especialistas confirma que, em se tratando de literatura, os personagens são a alma do negócio. Quem nunca torceu fervorosamente por um desses seres fictícios (para o bem o para o mal), que atire a primeira pedra.
Mas de onde vêm esses seres? Como são concebidos por seus autores? De que maneira ganham verossimilhança e capacidade de causar empatia nos leitores, a ponto de serem admirados como pessoas de verdade? Essas e outras questões são tratadas no livro A personagem, de Beth Brait, doutora, livre-docente e professora da USP (Universidade de São Paulo) e da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Com grande propriedade, a autora leva o leitor a refletir sobre a maneira como os personagens vêm sendo concebidos pelos escritores desde as primeiras produções literárias da história. Ela faz a contextualização entre essas criaturas e a tradição crítica, revelando as funções que adquiriram em cada época, desde balizadoras da moral até a expressão individual dos autores sobre a sociedade em que viveram. Beth Brait também aborda os recursos linguísticos empregados na construção dos personagens e os efeitos das diferentes técnicas narrativas sobre eles.
Apesar do caráter claramente acadêmico, o livro apresenta um texto acessível para iniciantes no estudo da literatura, como explica a própria autora: “Este livro deve ser tomado como uma introdução ao estudo da personagem, pois dirige-se a um público que analisa, produz e transforma textos de ficção. Na verdade, este é um livro que se destina a um público especial, que tem no texto um instrumento de prazer, conhecimento e trabalho, mas que se encontra no início das reflexões acerca das especificidades da narrativa”.
Aqueles que já se arriscam na criação literária encontrarão também, nas palavras de Beth Brait, ótimas dicas para aplicar em seus próprios textos. A professora destaca conceitos de vários estudiosos, entre eles R. Bourneuf e R. Ouellett (L’univers Du Roman – 1972) — “Os autores apontam quatro funções possíveis desempenhadas pela personagem no universo fictício criado pelo romancista: elemento decorativo, agente da ação, porta-voz do autor, ser fictício com forma própria de existir, sentir e perceber os outros e o mundo”.
Depois de uma boa dose de teoria, a autora apresenta relatos empíricos daqueles que atuam como deuses, criando mundos e seres de todos os tipos a seu bel prazer. “Quando pensamos nas personagens que povoam a tradição literária e que nos tocam tão de perto que temos a impressão de terem existido numa dimensão que as torna imortais e capazes de falar eternamente das inúmeras possibilidades de existência do homem no mundo, tocamos necessariamente no poder de caracterização de seus criadores”.
Certamente, o último capítulo do livro é a “cereja do bolo”, apresentando o depoimento de autores brasileiros sobre a forma como criam os personagens de suas obras. Confira abaixo trechos das entrevistas:
Domingos Pelegrini – “Criar personagens é, no meu modo de ver, principalmente observar e imaginar. Observo as pessoas interessantes − ou seja, as que me interessam vivamente por repulsa, atração ou qualquer envolvimento. Para criar ficção, aliás, não basta observar só as pessoas, mas ser observador de tudo”.
Ignácio de Loyola Brandão − “Anoto falas, frases, tiques, trejeitos, manias dos outros e vou jogando nos personagens. Tento também me ver através deles, me autocriticar. Vivo com uma agendinha no bolso, anoto escondido. Senão esqueço”.
João Antônio − “Fácil de compreender que o meu tipo de trabalho parte de uma realidade; é da vida que sugo meus personagens”.
Lygia Fagundes Telles − “À medida que os personagens nascem dentro da gente, é preciso escrever rápido. Porque nós vamos nos modificando, até mesmo sob a influência deles. Temos que aproveitar o momento enquanto está quente. O escritor tem que atuar como vampiro — antes que amanheça”.
Apesar de contar apenas 98 páginas, conteúdo é o que não falta nessa obra que faz parte da série Princípios, da Editora Ática. Vale a pena conferir e se aprofundar no tema!