Crônica: As pérolas em nosso pescoço – Sté Spengler

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Ela acordou naquele dia desejando inconscientemente que a manhã passasse depressa, pois à tarde “suas” crianças retornariam à escola para mais um ano letivo. A manhã foi atarefada, mas não foi realmente vivida. Aconteceu que a tarde acabou voando e nos últimos minutos ela desejou inconscientemente que seu turno terminasse para que pudesse ir para o seu curso de inglês. Aqueles instantes se passaram alegremente, mas não foram realmente vividos. Assim que a aula terminasse, ela voltaria para casa para se entregar aos mais loucos sonhos durante toda a noite, e então ela desejou inconscientemente que pudesse chegar logo em sua cama. O período de dez minutos no trajeto do curso até a sua casa foi breve, mas não foi realmente vivido.

As pessoas “desejam inconscientemente” que o dia logo termine e chegue o final do expediente para retornarem às suas casas. Elas passam a semana inteira “desejando inconscientemente” que chegue sexta-feira. Alguns meses “desejando inconscientemente” que chegue aquele feriadão. O ano inteiro “desejando inconscientemente” que cheguem as férias. “Desejam inconscientemente” concluir a graduação o mais rápido possível para finalmente começarem a trabalhar com vontade. “Desejam inconscientemente” que o príncipe encantado chegue para finalmente poderem dizer de boca cheia que são felizes. Suas vidas inteiras “desejando inconscientemente”… e não vivendo! Quanta hipocrisia!

Cada dia (e consequentemente cada um dos 86.400 segundos que nele há) é um presente da vida – portanto, deve ser encarado como tal. Nada de ficar desejando que um período passe logo para “chegar a tal coisa”. Momentos de dor devem ser realmente vividos, pois nos fazem amadurecer. Momentos de alegria devem ser realmente vividos, pois dão cor a nossa existência.

Na última semana estive lendo uma obra de Jostein Gaarder, filósofo norueguês, chamada “Através do espelho”. O livro conta a história de Cecília, uma garotinha que está morrendo. Apesar de o destino da trama ser a morte, penso que jamais vi um texto que retratasse tão bem a vida.

Era natal. Cecília estava em sua cama, pois sua doença não permitia que ela andasse por aí, quando recebeu a visita de um anjo. Com o passar dos dias os dois se tornaram grandes amigos e ficavam horas discutindo questões entre a terra e o céu. Numa de suas reflexões, Cecília escreveu em seu caderninho: “Quando eu morrer, o fio de prata de um colar de pérolas vai se arrebentar, e todas as pérolas, lisinhas e acetinadas, vão rolar pela terra e correr de volta para a casa delas, para suas mães-ostras lá no fundo do mar. Quem vai mergulhar e apanhar minhas pérolas depois que eu tiver ido embora? Quem vai saber que elas eram minhas? Quem vai adivinhar que antigamente, há muito tempo, o mundo inteiro pendia em torno do meu pescoço?”

Gosto de relacionar as pérolas com os momentos da nossa vida. É a minha visão da obra, se você pensa diferente, sinta-se livre para manifestar sua opinião. Enfim. Quando um dia nós morrermos (graças a Deus não vivemos para sempre – imagina ser um velho rabugento de trezentos e oitenta anos?) “nossas pérolas vão rolar pela terra”. Eu não sei você, caro leitor, mas eu busco/buscarei realmente viver cada uma de minhas pérolas. Chega de passar a vida inteira empurrando os dias com a barriga. O extraordinário é AGORA.

 

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