Como uma das primeiras escritoras negras do Brasil construiu as tramas de sua literatura em Úrsula.
Uma das primeiras romancistas negras do Brasil
Nove anos antes da publicação de Navio Negreiro, o icônico poema de Castro Alves que trazia a denúncia dos horrores experimentados pelos negros escravizados, vinha à luz Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, romance de enorme relevância para a causa abolicionista no Brasil. Publicada em 1860, a obra hoje é saudada como o primeiro texto brasileiro em que as personagens negras e escravas demonstram consciência plena de sua condição e resistência contra a violência física e moral que lhes é imposta.
Maria Firmina, filha de pai negro, foi professora, criadora da primeira escola mista do Brasil e uma das primeiras romancistas do país – posto que divide, conforme apontam pesquisas recentes, com Nísia Floresta. Sua vida e obra têm sido alvo de um interesse cada vez mais crescente, dado o pioneirismo de sua produção literária e de seu posicionamento incisivo, tanto na ficção quanto em artigos de jornal, sobre a abolição da escravatura.
A postura de resistência adotada pela autora costuma ser apontada como um fator importante para a invisibilização de seu nome no meio literário da época. Esse meio era composto principalmente por homens brancos com ampla formação letrada, e para o seu apagamento do cânone literário a seguir.
Assim, é interessante analisar como Úrsula se constrói, avaliando os elementos mais típicos do gênero e os pontos em que o olhar próprio de Maria Firmina sobre a realidade trazem elaborações originais para a obra.
A trama de Úrsula
A organização do arco principal do enredo é a parte mais convencional do romance. Temos como protagonistas o casal Tancredo e Úrsula, jovens de coração nobre e de famílias respeitáveis, que encontram um no outro a promessa de um futuro feliz por meio de um amor puro.
Bem ao gosto romântico, surpresas e revelações vão sendo apresentadas ao longo da obra, de forma a impressionar o leitor e impeli-lo a torcer pelos apaixonados. Além disso, o impiedoso comendador P., tio de Úrsula, é um vilão clássico, que vive em busca de satisfazer os próprios desejos sem se importar com os estragos feitos nas vidas à sua volta.
O arco das personagens secundárias, entretanto, é o que traz maior brilho para a obra de Maria Firmina dos Reis. Isso porque ele dá destaque para as percepções, angústias e ações de Túlio e Susana, dois escravos. O primeiro é responsável por salvar Tancredo, ferido no início da narrativa, e conseguir, por meio desse ato de bondade, a sua alforria. A segunda, maltratada pelo tio e pelo pai de Úrsula na época em que os servia, agradece estar apenas junto das duas mulheres. Mas lamenta profundamente o seu estado de cativa.
Nos meandros das relações
A relação de Túlio e Tancredo é conduzida de uma maneira terna, buscando equiparar os dois homens – que salvam-se um ao outro – e ressaltar a diferença entre eles não no caráter, em ambos positivo e generoso, mas na condição social.
O texto traz claramente a dor de Túlio por sua situação: “E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma (…) Era infeliz, mas era virtuoso”(p. 54-55).
Sensibilizado, Tancredo lhe concede o dinheiro para a alforria, manifestando o seu desejo de uma organização social mais justa no futuro: “Dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos” (p. 58).
A força interior por trás do escravizado
Esse tipo de relação tem sido bastante problematizada atualmente, já que a imagem do “branco salvador” pode acabar sugerindo que o negro, por si só, não é capaz de uma atitude de resistência. De fato, Túlio mostra-se um jovem dócil e em momento algum toma atitudes que busquem reverter a sua condição.
Mas é interessante notar que, ainda assim, a consciência da injustiça a que está sujeito e da qual não tem a mínima culpa aparece fortemente marcada. E isso em discurso direto ou indireto. A liberdade é entendida como um direito de qualquer ser humano, e indevidamente retirada daqueles que são feitos escravos:
“Túlio obteve pois por dinheiro aquilo que Deus lhe dera, como a todos os viventes – era livre como o ar, como o haviam sido seus pais, lá nesses adustos sertões da África” (p. 68).
Da mesma forma, a relação entre Susana e Úrsula se forma a partir de conflitantes sentimentos. A escrava tem vívidas lembranças de sua vida na África, onde possuía um marido e uma filha, e da degradante condição de escravidão que lhe foi imposta. Ao descrever os horrores da viagem no navio negreiro, Susana é taxativa:
“É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos” (p. 122).
Após passar pelas mãos do tio e do pai de Úrsula, ambos homens violentos, a escrava passa a viver com a moça e sua mãe, o que a alivia dos sofrimentos. Ainda assim, da mesma forma que ocorre com Túlio, Susana não considera a sua situação de cativa aceitável:
“Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar!” (p. 123).
Contextualizando a obra
A manifestação consistente, ao longo de toda a obra, da injusta situação do negro no Brasil é um ponto de destaque da obra. No entanto, considerando que o leitor padrão de um romance do período era a mulher burguesa, o foco da história acaba recaindo sobre o romance de Tancredo e Úrsula. É que essa é uma questão de maior interesse para esse público.
Por isso, as duas personagens negras acabam fazendo sacrifícios em busca do bem-estar do casal protagonista. Por meio das ações altruístas de Túlio e Susana, Úrsula se alinha com outras obras abolicionistas de teor sentimental do período. Uma das quais A cabana do pai Tomás, de Harriet Stowe. Essas obras propunham uma resistência paciente e silenciosa às dores da escravidão em nome de uma elevação espiritual de fundo religioso.
O trecho que descreve o confronto entre o comendador e Susana, vai nessa direção:
“Pediu a Deus que lhe pusesse um selo nos lábios, e o valor do mártir no coração” (p. 176).
O texto de Maria Firmina dos Reis traz um estilo que não nega a escrita de seu tempo. Nele existe excesso de adjetivos e de expressões dramáticas. No entanto, sua abordagem sobre as personagens negras é significativa. Dá a elas voz para refletir e capacidade de ação, ainda que dentro dos estreitos limites possíveis de sua condição social. As palavras de Túlio resumem a força desse posicionamento: “Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!” (p. 66).
Referência
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2018.