Entre nós & entrelinhas: Livros furtados X Sonhos roubados – Cláudia de Villar

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Como muitos já sabem, além de escritora e colunista, eu também sou professora. Leciono há quase treze anos no magistério público estadual do RS. E nessa minha andança vi e aprendi muitas coisas. Adquiri novos conceitos, deixei de acreditar em verdades que até então eram absolutas, mas acima de tudo… Me surpreendi e me emocionei muito com alguns fatos aos quais eu presenciei em sala de aula.

Há algumas semanas atrás eu escrevi o texto “Odeio Ler”, relatando um caso verídico que aconteceu comigo em sala de aula. Hoje, trago para vocês um novo acontecimento. Um caso de furto ou o que melhor seria… Um caso de roubo. Eis o fato:

Sempre tive em minha sala de aula, algumas caixas de papelão com revistas, HQs, tirinhas recortadas com um fim determinado e livros, muitos livros. Livros doados pelos próprios alunos, livros escolhidos na biblioteca da escola em que eu lecionava, livros doados por parentes e alguns livros por mim escritos. Livros novos, livros usados, livros muito usados e alguns já bem velhinhos… Mas livros. Livros mágicos. Livros coloridos, brilhantes, ilustrados. Alguns com capas duras, outros com capas molinhas, velhinhas. Mas eram livros.

Sempre tive o hábito de deixar que os alunos pegassem qualquer livro ou qualquer objeto para ler quando eles terminassem seus exercícios. Poderiam pegar o que desejassem ler, desde que pegassem algo… O importante para mim era que eles tivessem contato com a leitura sem medo, sem pressão, sem uma obrigatoriedade em apresentar algum tipo de trabalho ao final da leitura.

Eis que num certo ano eu percebi, num certo dia, que as minhas caixinhas de letras estavam ficando um pouquinho ‘fofas’. Os livros sempre tão esmagados naquelas caixas agora estavam ‘dançando’ entre os seus pares. O que estaria acontecendo?

Livros furtados.

Sim… Alguns exemplares estavam sendo levados para casa de algum ou alguns alunos da minha sala de aula. MINHA SALA DE AULA. Quanto egoísmo. Eu não podia deixar aquele furto acontecer assim… Na minha cara! Perguntei, questionei, indaguei. Ninguém se acusou e ninguém se condenou. Quanta ingenuidade. Livros furtados e ninguém era o culpado. Quem, entre aqueles alunos, iria dar um passo à frente? Alunos entre 9 e 10 anos. Tinha também alguns mais velhos, uns entre 11 e 12 anos. Mas quem era o culpado?

Tentei nas semanas seguintes observar o movimento por entre aquelas caixas letradas. Mas professor sempre tem mais de uma coisa pra fazer na sala de aula. Difícil tarefa a minha. Tinha dias que eu, literalmente, me plantava ao lado das caixas, observando, como um militar austero, o andamento dos meus alunos.

Livros furtados. Eles continuavam sumindo.

Um dia, tive um ataque daqueles! Quanta burrice!!! Explodi num grito doido. Meus alunos com olhos esbugalhados. Eu com ódio nos olhos. Guardei as duas caixas letradas (agora quase sem letras). Enquanto o culpado não aparecesse, eu não colocaria mais as caixas naquelas classes forradas com papel pardo.

Momento de dor.

Sonhos roubados.

Hoje, após os anos e o tempo, ainda sinto uma raiva de mim mesma. Uma dor que machuca e volta toda vez que olho para as minhas caixas letradas (ainda as tenho).

Sonhos roubados.

Numa certa manhã muito chuvosa, uma verdadeira tempestade gaúcha, quase nenhum corajoso aluno em sala de aula eu soube a verdade. Quando não há muitos alunos em sala de aula, sempre apliquei uma aula alternativa. Com reforços individuais para aqueles que mais precisavam e um pouco de jogos para alegrar o dia cinzento. E os livros? Bem, se algum aluno desejasse ler… Que lesse!

Foi nessa manhã de fim de outono que minhas lágrimas se juntaram à chuva que caía. Uma manhã surpreendentemente reveladora. Uma manhã de descoberta. Uma manhã que durou dias. Uma manhã de outono.

Ele veio até mim. Moletom folgado, muito acima de seu tamanho. Capuz na cabeça, calção velho, chinelos nos pés (naquele frio todo de outono) e uma coragem imensa. Ele aproximou-se da caixa de letras. Olhou para mim que, naquele instante, estava aproveitando a ‘folguinha’ e adiantando o meus planos de aula e furtou seu desejo.

Livros furtados.

Quando ele olhou novamente em minha direção nossos olhares se encontraram. Ele havia sido descoberto. Não havia escapatória. Era o culpado. E eu era a sua algoz. Qual seria a sua pena?
Eu, diante daquela descoberta, fiquei paralisada. Ele era o meu aluno mais velho, o de 12 anos. Então por que o aluno mais velho ainda não havia aprendido que furtar era pecado?

Sonhos roubados.

Pecado era ter os sonhos roubados. Nessa manhã eu aprendi.

Fiquei em silêncio. Precisava falar com a orientadora da escola. O que fazer? Ele me ensinou o que fazer. Ao sair da escola ele me alcançou correndo. Ficou ao meu lado. Nada disse. Eu, maldosamente pensei: o que ele quer agora? Roubar-me?

Sim… Ele roubou meus pensamentos. Tirou de mim verdades até então absolutas e hipócritas! Eu não merecia mais olhar para aqueles olhos tristes e de sonhos roubados.

Ele começou a contar-me sobre a sua vida… Seus quatro irmãos pequenos que ele tinha que cuidar, suas tardes nas ruas a pedir dinheiro, a vender balas, a vender chicletes. Falou-me sobre o seu pai preso, sua mãe que trazia “amigos” para passar alguns instantes de uma noite qualquer dentro de casa. Eu, nesse momento, horrorizada, gelei. E eles? Sim, ele e seus irmãos? Assistiam a tudo? Assistiam a mãe a receber seus “amigos” noturnos? Nem precisei verbalizar. Ele leu a pergunta em meus olhos. Sua mãezinha mandava todos para fora de casa. Ficavam os cinco embaixo de um telhado de zinco nos fundos da casa até que as ‘visitas dos amigos’ terminassem. O que eles faziam?

Sonhos roubados.

Ele, o único que sabia ler… Lia para os quatro irmãos alguma história dos livros furtados.
Hoje, apaguei da memória muitos conceitos que eu tinha até então. Relatei para meus superiores o acontecido. Mas nenhum conselho tutelar, nenhuma medida civil conseguiu apagar do meu coração a dor que eu senti nos olhos daquele aluno.

Fico pensando, remoendo e me fazendo sofrer toda vez que imagino o quanto aqueles livros furtados ajudavam a apaziguar os corações daquelas crianças que tiveram seus sonhos de infância roubados.

Por fim e sem saber como terminar esse meu depoimento… Deixo aqui apenas uma aprendizagem obtida nessa tragédia: Livros podem trazem paz, alegria, conforto e fuga.

Luz e livros a todos.

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