Paira um fantasma sobre O Morro dos Ventos Uivantes, romance de Emily Brontë. Escondido quando seus personagens são crianças, se desenvolve com eles
O fantasma da autoria feminina
Três irmãs com dom natural para o fazer literário. Nascidas numa família de posses, em um país europeu. Criadas num ambiente cultural favorável em que familiares incentivavam o livre exercício da imaginação e de leituras variadas. Tudo isso somado ao esforço próprio das três. Pronto: eis a fórmula para a formação de escritoras de sucesso, certo? Lamentavelmente não.
As irmãs Brontë – Charlote, Emily e Anne – tiveram que se esconder sob pseudônimos masculinos (Currer, Ellis e Acton Bell, respectivamente) para romper as barreiras do machismo e alcançar o sucesso merecido no século 19, fazendo sua literatura chegar aos nossos dias. Quantas, ao longo da história, devem ter sucumbido pelo caminho? Muitas devem ter deixado de escrever para priorizar “obrigações domésticas”, impostas pela sociedade patriarcal; outras certamente foram privadas da educação letrada, considerada inútil ou perniciosa para a “função natural” de mãe e esposa, ou simplesmente fizeram parte de etnias escravizadas, cujas culturas seriam eclipsadas por imperialismos eurocêntricos. Isso sem falar das que simplesmente nasceram nas classes sociais economicamente exploradas em seu próprio território (proletariado ou precariado), para quem escrever seria um luxo a que não poderiam se dedicar em meio à luta pela sobrevivência.
Quando Charlotte Brontë enviou alguns de seus poemas para o poeta Robert Suothey, este respondeu categoricamente: “A literatura não pode e não deve ser assunto para mulheres”. Mas as três irmãs contrariaram essa concepção social dominante e, com muita luta, conseguiram se tornar escritoras. Entre elas, a que obteve mais notoriedade foi Emily Brontë (1818-1848).
A forma do fantasma: O Morro dos Ventos Uivantes
Nascida em Howarth, lugarejo isolado de Yorkshire, Inglaterra, escreveu um magnífico romance, demonstrando maturidade intelectual impressionante para pessoa de menos de trinta anos de idade. Estamos falando de O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights), de 1847.
O personagem Sr. Earnshaw precisou deixar por uns dias sua propriedade em Wuthering Heights (“morros uivantes”) para fazer uma pequena viagem à cidade de Liverpool. Voltou de lá três dias depois trazendo consigo “um menino sujo, roto, de cabelos pretos” que, ao ser posto de pé, “limitou-se a olhar em torno, engrolando palavras de uma algaravia que ninguém conseguia entender”.
Os filhos do Sr. Earnshaw – Hindley e Catherine – receberam mal o menino, tão física e socialmente diferente deles. A mesma antipatia foi demonstrada pela Srª. Earnshaw e até pela criada Ellen (ou Nelly) Dean.
O rapaz foi defendido pelo Sr. Earnshaw, cujo desejo de amparar o pequeno “cigano” acabou não conseguindo se sobrepor às convenções sociais britânicas, entranhadas também em Wuthering Heights. Isso apesar de a sociedade hierárquica conceber o patriarca Earnshaw como líder no universo privado da propriedade dos morros uivantes.
Pois ocorre que o poder do chefe de família não era absoluto: estava submetido a fatos sociais – a regras explícitas ou implicitamente estabelecidas, oriundas de estratificações econômicas, étnicas e culturais vigentes. O rapaz que ele trouxera das ruas de Liverpool seria sempre um estranho naquele meio burguês, como se evidencia no fato de que recebera novo nome (desprezando a validade da sua história pregressa), mas permanecendo sem sobrenome, como um ser sem família na verdade, apesar de aparentemente “adotado” pelos Earnshaw. Diferente de todas as pessoas com quem viria a conviver, seu nome completo seria apenas: Heathcliff.
Aos poucos a pequena Srtª. Earnshaw foi se afeiçoando ao garoto agregado à família. E ele, também, começou a se alegrar com a companhia dessa menina a quem chamava pelo primeiro nome, Catherine, ou mesmo pelo apelido de Cathy, sem a menor cerimônia. Em suas brincadeiras, correndo pelo campo, sujos e arranhados, era como se tivessem criado um mundo só para si. Era um universo sem preconceitos étnicos, classes sociais, hierarquias ou conveniências de salão – um mundo de sonho, liberto das amarras da economia, da política ou de convenções familiares e comportamentais.
Mas o monstro da realidade começou cedo a se esgueirar pelos caminhos ingenuamente trilhados pelas duas crianças. Hindley, irmão de Cathy, maltrata Heathcliff. A governanta Neally Dean, apesar de se contrapor aos maus tratos, também reclama da “vida selvagem” que Catherine vinha levando junto ao irmão adotivo. Com a morte do Sr. Earnshaw, Heathcliff é rebaixado, por Hindley, a simples empregado de estábulo. As barreiras de classe vão se tornando cada vez mais sólidas: de um lado, o universo rústico, iletrado, selvagem, pobre; de outro, o meio chique, bem comportado, aristocrático, elitista. A alternativa que se apresenta para Catherine é a escolha entre: o óbvio, já socialmente esperado, casamento dentro de sua classe; ou uma fantástica, talvez impossível, união a Heathcliff.
Abandonando o fantasma da escola romântica
Esse dilema da diferença econômica entre apaixonados é usual dentro das tramas do Romantismo, escola literária a que o romance de Emily Brontë se filia. Por exemplo, no romance O Garimpeiro (1872), do brasileiro Bernardo Guimarães, o que veríamos seria o personagem principal “romper” a barreira de classe duma maneira artificial. Ele simplesmente enriquece para se casar no final com a mocinha, a qual passara o livro inteiro oprimida por um pai ganancioso que queria casá-la com algum ricaço.
Apesar de bem escrito e valer a leitura, há de se convir que O Garimpeiro, tem uma história bastante estereotipada. O competente romance Senhora (1875), de José de Alencar, traz um pouco mais de originalidade no tratamento do tema, mas sem escapar de maniqueísmos e alguns acontecimentos como que forçados pela vontade autoral, comprometendo um tanto a verossimilhança.
O romance O Morro dos Ventos Uivantes escapa dos cacoetes comuns do Romantismo. Pois nesse livro magnífico não se personifica o adversário do casal apaixonado: não há, por exemplo, um pai malvado a proibir a união de Catherine e Heathcliff. O adversário está dissolvido no ar como um fantasma: são convenções sociais difusas, dificuldades econômicas, preconceitos e segregações mal confessadas. Vê-se que não há proibição explícita ao casamento dos dois enamorados: é o mundo prático que se coloca como barreira entre eles. De que viveriam? Onde arranjariam trabalho? Como e em que meio criariam seus filhos, sem dispor de empregados ou de todo o aparato doméstico a que Cathy se acostumara desde a primeira infância? Como suportar os preconceitos de que seriam vítimas no dia a dia?
Catherine acaba se casando com Edgar Linton, um homem convencional, bem educado e rico. Mas não se pense que ela seja mostrada de maneira simplória como uma interesseira. Cathy sofreu muito, dilacerada entre o amor selvagem e sem futuro pelo antigo amigo Heathcliff e a afeição que sentia por seu promissor pretendente Edgar. Este, por sua vez, não é o vilão que costuma aparecer em romances românticos usuais colocando-se entre o casal protagonista (caso do rústico personagem Manecão, do livro Inocência, de Visconde de Taunay, de 1872).
Após longa ausência ruminando seus ressentimentos, o ultrarromântico Heathcliff retorna para se vingar. Os alvos são: Hindley Earnshaw (o “irmão de criação” que o espezinhou na infância e o humilhou na idade adulta) e Edgar Linton, que conquistara o amor de Catherine. Esta, no entanto, também não deixa de se tornar odiosa aos olhos do contraditório Heathcliff, que – ao mesmo tempo – a ama com loucura.
Eterno rancoroso, Heathcliff põe em curso uma revanche sem fim. Casa-se sem amor com Isabela (irmã de Hindley) apenas para infligir sofrimento à família Linton, na qual sua amada Cathy ingressara pelo casamento. A mesma tortura se estende depois a Hareton (filho de Hindley), de quem se torna um tutor perverso e embrutecedor após diversos estratagemas. Maltrata também o próprio filho, por seu parentesco com os Linton. Pela mesma razão, hostiliza a pequena Cathy, filha de sua adorada Catherine Earnshaw.
Heathcliff é, então, o vilão da trama? Em determinados momentos ele se parece mais com um herói romântico, noutros é quase um demônio. Os personagens são multifacetados, tal qual na vida real, apesar do exagero na dramaticidade dos conflitos que se dão entre eles.
Emily Brontë nos guia pelos mais profundos vales da psicologia humana, levando em conta com mestria os aspectos sociais que nos conduzem a eles. Como na clássica narrativa de de Henry James A Outra Volta do Parafuso (de 1898), o assustador se insere no universo da classe dominante pela interferência dum personagem estranho a ela.
A autora (bem antes da narrativa de Henry James) nos pôs em contato com Heathcliff, cujo fantasma assombra as construções sociais, familiares e psicológicas dominantes. Isso até os dias de hoje. E não apenas na Inglaterra