FLIPEI – Embarcando em uma utopia pirata em Paraty

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FLIPEI – Embarcando em uma utopia pirata em Paraty

FLIPEI: Com um movimento engajado e um arsenal de livros subversivos, Editoras Independentes pirateiam a FLIP, a maior feira literária do Brasil.

Foto divulgação

As origens 

A embarcação pirata levanta âncora e dá a partida no motor pela orla da cidade histórica de Paraty, que significa viveiro de peixes na língua tupi-guarani[1]. A bandeira vermelha com o Jolly Roger – a figura cadavérica dos piratas – tremula com o movimento. O navio adentra o rio Perequê-açu, ou entrada grande de peixes, até aportar à margem direita com águas calmas e uma pequena prainha.

O ano é 2018. Os marujos, com seu carregamento perigoso – uma pilha de livros do pensamento crítico -, fincavam a bandeira da 1ª Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI) na areia de praia, declarando ali o primeiro paraíso pirata literário do Brasil.

Desde aquele ano, os piratas e editores independentes têm o costume de saquear as atenções da cidade, sede da conhecida Festa Literária Internacional do Paraty (FLIP), com seu arsenal de livros subversivos, literatura independente e movimento socialmente engajado.

Na pandemia

Este ano, contudo, a FLIPEI teve de ocorrer sem o icônico barco pirata e on-line, em decorrência da pandemia de COVID-19.

“Claro que a gente gostaria de estar no barco tomando um chopp na frente da praia, todos vacinados e com nossas roupas de jacaré. Mas a gente tá muito orgulhoso desse agenciamento com mais de 100 editoras independentes dessa edição”, comenta Rafael Limongelli, um dos coordenadores do projeto, ao Homo Literatus, em uma entrevista concedida pelo Zoom.

Rafael explica que, no início, a ideia era piratear a FLIP, a maior feira literária do Brasil, e contemplar a literatura alternativa de editoras independentes.

Com a tormenta incerta da pandemia de COVID-19, foi necessário, nas edições de 2020 e 2021, trocar a marola do Perequê-açu pelas ondas wireless nas mídias sociais do evento.

O tema deste ano rememora os 150 anos da Comuna de Paris, “a primeira tentativa de autogestão de trabalhadores e trabalhadoras do mundo ocidental”, nas palavras de Rafael.

Enquanto o exército francês se reconstruía da guerra franco-prussiana e o governo ainda engolia a humilhação do conflito perdido aos alemães, a classe proletária parisiense pegou em armas e formou o primeiro governo popular conhecido. Esta seria uma inspiração para as revoltas proletárias que se formariam no século XX.

A 4ª Edição da FLIPEI teve como tema: Livros e Comunas Para Novos Futuros. Ela ocorreu entre 18 e 28 de março, sendo mais extensa que nos anos anteriores.

Ao longo dos dias, houve diversas palestras e conversas entre youtubers e intelectuais de vários setores progressistas, como o Pe. Júlio Lancellotti e o historiador Jones Manoel. Os convidados trouxeram temáticas relevantes da atualidade, como o antifascismo, neoliberalismo e a pandemia.

É possível rever todas as palestras no canal oficial do evento. Além disso, foi oferecido um desconto especial de 25% para comprar nas 103 editoras participantes durante os 10 dias de literatura e pirataria.

Pirateando a FLIP

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo Cunha, ensina que pirata significa:

pirata: ‘bandido que cruza os mares com o objetivo de roubar’ ‘ladrão, gatuno’.[2]

Há, ainda, outros sentidos mais novos para esta palavra. Piratear, no jargão popular, quer dizer copiar sem autorização ou plagiar propriedade de terceiro. Todo mundo conhece aquela pessoa com programas, livros e até mesmo camisas de futebol piratas. De uma forma ou de outra, os produtos piratas também ficaram associados à má qualidade de falsificações.

Todavia, o sentido de pirataria da FLIPEI não pode ser resumido a um verbete deste cemitério de palavras e gírias pejorativas. Para entender o real significado de “piratear a FLIP”, Rafael recorre ao escritor anarquista Hakim Bey. Sua ideia de zonas de resistência piratas foi exposta em um de seus livros, Utopias Piratas, que será reeditado pela editora Autonomia Literária.

Com o aparecimento do capitalismo mercantil, um barco pirata seria a primeira fábrica ocupada por uma resistência. Assim, ele ilustra as teses do filósofo.

No livro, Bey vai dar aos piratas um protagonismo e versão diferentes da historiografia oficial. Em sua visão, os piratas foram responsáveis pelas primeiras redes de locais e esconderijos de resistência ao Estado em inúmeros arquipélagos e partes remotas no além-mar.

Um refúgio para pequenas editoras

Rafael desenvolve ainda que todos os aspectos do evento são pensados sob esta filosofia: “dentro da FLIPEI a gente tenta produzir um ambiente de trabalho socialista”, desde o tratamento dos marujos (como são chamados os trabalhadores envolvidos) até a equidade salarial.

A Festa Literária Pirata das Editoras Independentes nasce como proposta de ser um refúgio aos pequenos editores excluídos da Festa oficial de Paraty e um espaço de disputa de pensamento e insurgência.

Rafael explica que a FLIP, resguardada a grande importância para a promoção de cultura, repete muitos vícios da estrutura colonial e deixa à parte o pensamento crítico de editoras independentes. A solução para isso foi engenhosa: “entrar de penetra” na maior festa literária do Brasil.

Os visitantes até mesmo passaram a incorporar a FLIPEI como uma extensão à esquerda política da festa literária oficial, não como uma “anti-FLIP”.

O público da versão pirata decerto não é formado completamente por anarquistas e militantes engajados, mas em primeira instância por um público leitor e interessado no pensamento crítico. Isso já é meio caminho andado para a popularização da cultura e pluralidade de pensamento.

O papel das editoras independentes

Se o mercado editorial no Brasil já é volátil para editoras consagradas, deve-se imaginar que o problema é muito maior para as pequenas. Seria errado dizer que todas estão no mesmo barco. Na verdade, todas estão na mesma tempestade, mas, enquanto grandes editoras se abrigam em um navio, as menores muitas vezes têm uma canoa ou um colete salva-vidas para tentar não afundar.

A FLIPEI oferece, nesse sentido, uma grande ajuda às editoras alternativas. Uma casa no centro colonial de Paraty chega a custar 40 mil reais para os cinco dias de FLIP, uma quantia fora da rentabilidade de qualquer pequena editora. O barco pirata, além de ser um símbolo, serviu de abrigo rentável a estas editoras.

Embora camufladas, as editoras independentes têm grande papel na promoção de literatura de fora do mainstream editorial. Gustavo Racy, editor da sobinfluencia editora, uma das participantes do evento, explica que estes novos títulos começam a aparecer por uma demanda da população:

“O progresso da distribuição de renda e acesso ao ensino superior”, ele explica, “criou uma demanda por uma literatura que o mercado hegemônico não oferece. As periferias estão lendo mais!”.

Gustavo, que também é tradutor, fala do alcance que as “editoras nanicas” englobam. “Enviamos livros para todo Brasil”, ele conta, “algumas cidades do interior nós nem sabíamos o nome. Já enviamos livros até mesmo para a fronteira com a Bolívia”.

Dentro do seu portfólio, há muitos livros ainda inéditos para o público nacional. Uma das futuras publicações da sobinfluencia é uma tradução direta da escritora holandesa Neel Doff, ainda desconhecida dos leitores brasileiros, com o título: Dias de fome e angústia. Na obra semiautobiográfica do movimento realista, a autora narra a vida dura do proletariado belga na segunda metade do século XIX, tocando em temas sensíveis, como a fome, a prostituição, a miséria e a angústia humana.

Para o editor e professor, abrir este espaço na FLIPEI não é apenas trazer outras editoras para o mercado, mas dar oportunidade a elas de mostrarem suas próprias definições de livros. “Um livro envolve afeto”, complementa.

Ele ainda confessa que é difícil dizer o que é uma editora independente: “Não sei se damos uma definição, mas acho que seria pensar e produzir outras realidades. Realidades que não estão fixas no capitalismo. Vai além do livro, do ativismo. É imaginar em ato”, encerra.

[1] NAVARRO, Eduardo de Almeida. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. [S.l: s.n.], 2006.

[2] CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Brasil: Lexikon, 2010

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