Funcionalidade e radioatividade da palavra ‘poema’

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Qual radioatividade o poema possui e qual entidade mística existente nele? 

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Poeta Javier Heraud

“A poesia não é uma atividade literária, e sim vital”. Com esta frase de Stevens Wallace, eu me nutro a cada dia lendo este material espiritual e tão pungente que é o poema.

Nestas pesquisas de poetas, homens, mulheres ou andróginos, venho me deparando com diversos materiais férteis, energéticos, de expressividade impar e com alta largura de ressonância. Poetas peruanos, argentinos, cubanos, chilenos, guatemalcos, nicaraguenses, gente de estirpe forte, e que usavam o poema como ferramenta ferrenha em âmbitos políticos, sociais e ambientais. Recentemente, li sobre o Javier Heraud, que publicou o El Rio com dezoito anos e, em seguida, seu segundo livro  El Viaje. Predominam poemas em que alterna a frescura juvenil com a obscuridade e teimosia de seu amadurecimento precoce. Versos de uma fluidez viva e de punho forte. Poeta da turma da geração de 60, a de Juan Ojeda, Cesar Calvo e Antonio Cisneros.

Heraud assemelha-se a um Rimbaud. Passou como um cometa, pois faleceu com 21 anos, atacado por rajadas de tiros numa rua, assassinado pelas forças da ditadura peruana. Combateu pelo Exercito de Libertação Nacional do Peru com arma e caneta na mão. Lendo sobre a caminhada de Heraud em sites peruanos, existem relatos de amigos que citam momentos em que se podia observar o jovem escrevendo poemas nos acampamentos quando esteve militando e em viagens da guerrilha, que, aliás, culminou por passagens pelo Brasil . Usou o melhor material bélico até então, o poema, para diminuir as diferenças, para expor o que estava, até então, silencioso. Usou o poema para ser a garganta dos excluídos, para ser o antebraço que abraçava o desamparado.

Sustento-me nas palavras de Sophia de Mello, mas não como um saudosista de frases de efeito, mas sim como um leitor assíduo de poema que sente a eletricidade que envolve organizar vocábulos, criar imagens  e figuras de sintaxe diante de um ciclone de perturbações poi,  diz a portuguesa: “De fato, um homem que precisa de poesia precisa dela, não para ornamentar a sua vida, mas sim para viver. Precisa dela como precisa de comer ou de beber. Precisa dela como condição de vida”.
Há de ressaltar – se a pegada da produção poética peruana no poema, avistando, de Cesar Moro à Vallejo, de Alberto Hidalgo à  Oquendo de Amat, onde  culminará nesta turma da década de 60 que, seguindo a tangente de vanguarda e deslocamento ao qual o poema se propôs diante do panorama ditatorial que diversos países latino-americanos resistiram.

“Quero que saiam dois gerânios dos meus olhos.” Heraud

frelimo1O que questiono, e questiono – me demasiadamente fascinado, é, como o poema  se estabelece tal qual entidade espiritual, temperamental e ativa nestes momentos conflituosos, seja no suicídio, como aconteceu com Única Zuhr, Plath e Iessienin; como o poema acha brecha, espaço, num corpo tomado por turbilhões. Sem cair na questão teórica da funcionalidade da linguagem citando Jakobson e  Heiddeger, caio no carpete um tanto macio da instiga e do encantamento nas leituras e escavações estrelas que tenho feito. Cito antologias de Poesia de Combate em Guiné Bissau e em Moçambique, a matéria Nas Trincheiras que a Revista Piauí promoveu com poemas escritos em períodos de guerra para reafirmar a carga nuclear que esta palavra POEMA carrega consigo.

Ressalto os momentos hostis os quais viveram Stella e Maura Lopes. De Victor Jara que escreveu o poema SOMOS CINCO MIL, duas horas antes de ser fuzilado e vendo todos os amigos sendo fuzilados. De Cruz e Sousa, hoje colocado na tríade do simbolismo mundial junto com Mallarme e Verlaine, que após falecimento teve o corpo levado num trem cargueiro de Minas para o Rio em situação lastimável; da russa Marina Tsvetaieva tendo que presenciar o fuzilamento do marido e a perda da tutela e consequente morte prematura da filha. Como o poema constrói brechas no isolamento? Age como válvula de escape, como cilindro de oxigênio em situações de desamparo, como acontecido também com  a Adalgisa Nery e Orides Fontella. Qual a carga deste material radioativo e místico que, às vezes, sobe ao topo da inutilidade mercantil e cotidiana?

Antes de ser fuzilado pelo exército de Franco, um deputado aliado à ditadura deixou esta frase acerca do poeta Lorca: “Mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver”.’

Na historiografia e biografia da expressão poética pode-se observar o quão o poema possuía uma carga intensa de influência e de intensidade, a começar pelos poetas gregos que quase foram expulsos das cidades, os oradores e cancioneiro que estavam nas praças junto com os mensageiros, os poetas japoneses e chineses que usavam versos para meditação, Maiakovski teve  edições de livros destruídos por generais, diferindo bastante do que se pensa sobre poesia nalguns cômodos da mente contemporânea, da poesia ser matéria melindrosa e pomposa, pelo contrario, o poema carrega consigo toneladas de nitroglicerina.

Marrighela e Ossip foram presos  e sofreram retaliações logo depois que escreveram e publicaram certos poemas, a palavra poética contém sim, e em longa escala, um número atômico potencializado. Brodsky, na Rússia, sobreviveu, mas foi julgado por “traduzir poemas”. Exemplos não faltam e creio que nunca faltaram..

Que radioatividade possui o poema, que entidade mística existe nesta palavra?

Outro sujeito, é o guatemalco, Otto Rene Castilos, poeta, incorporo a ’”Las Fuerzas Armadas Rebeldes’’ , assassinado brutalmente pela força de segurança do Estado. Anos depois o governo da Guatemala pede desculpas à família e às letras do país pela brutalidade que agiram com o poeta.

E prosseguimos então nossa trilha dentro da palavra Poema, que a ação do verbo Poien efervesça nossos músculos, veias e tonifique nossos ossos.

Abaixo, poema de Charlotte Delbo, poeta que sobreviveu aos dias tenebrosos do  campo de concentração alemão.

 

Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos

Eu suplico a vocês
façam qualquer coisa / aprendam um passo / uma dança /
alguma coisa que os justifique / que dê a vocês o direito /
de vestir a sua pele o seu pelo / aprendam a andar e a rir /
porque será completamente estúpido / no fim / que tantos tenham sido mortos /
e que vocês aí vivam / fazendo nada de suas vidas.”

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