Gal Costa e a Resistência no disco “Gal” (1969)

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Gal Costa e a Resistência no disco “Gal” (1969)

O peso da ditadura militar representada por Gal Costa em um dos grandes álbuns do rock brasileiro.

Gal Costa. Foto: Bob Wolfenson / Divulgação

Uma força estranha

Era por volta de 2007, quando devia ter uns 9 anos. Alguém que tinha o mesmo nome, CPF e DNA que o meu, mas que claramente era outra pessoa do que sou hoje, estava em um ginásio esportivo com péssima acústica, participando de um dos vários festivais da canção no interior do sul do Brasil, e ouviu pela primeira vez alguma desconhecida rasgando a voz para esbravejar: 

“Por isso uma força me leva a cantar 
Por isso essa força estranha 
Por isso é que eu canto, não posso parar” 

Óbvio que aquela criança não entendeu a letra, mas sentiu a intenção. Foi provavelmente a primeira vez que ouvi algo de Gal Costa, a cantora, compositora e multi-instrumentista que nos deixou dia 9 de novembro de 2022. Uma das maiores da música brasileira, a talentosa tropical apimentou o mundo da música pós-bossa nova e bateu de frente contra a ditadura militar.

Trajetória

Gal, que nasceu em 1945 e trabalhou em uma loja de discos quando jovem, era envolvida pela música desde antes de nascer, já que a mãe colocava música clássica para ela ouvir dentro da barriga.

— “É, tinha um momento do dia que ela punha música clássica e se concentrava para o feto absorver. Ela queria que o seu filho fosse um grande violonista clássico, um músico maravilhoso. E aí nasci eu — ela sorri. — Uma cantora.”

Entrevista de Gal Costa para a revista 29HORAS.

Ela cantava desde criança, conheceu Caetano Veloso e Maria Bethânia em 1963 e, logo depois, participou de um espetáculo em Salvador com Gilberto Gil, Tom Zé, Caetano e Bethânia. Nesse meio tempo, participando de outros espetáculos, Gal lançou seu primeiro disco compacto em 1965 e integrou outro muito importante, o Tropicalia ou Panis et Circencis em 1968. Mas foi em 1969 que Gal lançou seu primeiro disco solo chamado Gal Costa, cantando clássicos como Baby, Divino Maravilhoso e Não Identificado.

Ao longo da carreira, Gal sempre entregou obras fortes e emocionantes, como a música Força Estranha, que conseguia tocar qualquer coração duro. Naquela época do festival regional, a música fazia parte tradicionalmente das competições vocais em uma região onde se emocionar era demonstrar fraqueza. Mesmo que a intérprete não alcançasse a excelência que a música pedia, ainda assim a melodia arrepiava o cara mais rígido do ginásio. Era um dos vários sintomas que Gal Costa causava.

Filme

Outra vez que Gal me atingiu foi quando eu estava sentado na cadeira do cinema ansioso para ver o novo filme do Kleber Mendonça. Bacurau (2019) tinha feito um barulho em Cannes e chegava em Florianópolis. Não podia perder a pré-estreia, ainda mais depois de ter amado O Som ao Redor (2013) e, o meu favorito, Aquarius (2016). Precisava assistir ao seu novo trabalho o mais rápido possível.

Quando o filme rodou e as primeiras notas psicodélicas de Não Identificado tocaram, eu simplesmente mergulhei na cadeira e não consegui me segurar na Terra. Fui parar no espaço. A música combina tão perfeitamente com a cena de abertura que desconfio que o diretor fez o filme para essa música. 

Doces Bárbaros

Um tempo depois de lançar seu primeiro disco, Gal Costa e os amigos Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso decidiram comemorar os 10 anos de sucesso de suas carreiras individuais com uma turnê pelo Brasil em 1976. O grupo poderia ser classificado como hippie, mas se destacava principalmente por sua brasilidade. Inspirado em uma música de Caetano, o grupo foi batizado de Doces Bárbaros.

A turnê trouxe shows com figurinos coloridos, performances extravagantes e histórias que viraram documentário (Os Doces Bárbaros, de 1997, disponível na Globoplay), além de render a prisão de Gilberto Gil em Florianópolis. A turnê também gerou um disco com as canções, com destaque para minha versão favorita de Esotérico.

Luta democrática

Voltando aos anos pós 1964, era através da música que Gal reforçava a luta contra a ditadura militar no Brasil. Impossibilitada de fugir do país por falta de dinheiro, Gal Costa ficou enquanto os amigos da Tropicália se exilaram.

Foi quando ela chamou a responsabilidade para si e passou a ser mais contestadora, como foi também Elis Regina e vários outros nomes. A música Divino Maravilhoso, de Caetano e Gil, ganhou a voz agressiva e empoderada de Gal Costa e se tornou uma música de protesto daquele momento.

“É preciso estar atento e forte 

Não temos tempo de temer a morte”

Outro grande marco da luta de Gal na ditadura foi o disco Índia (1973). Além das músicas, o que mais chamou atenção dos censores foi a estética visual do disco. A capa apresentava um close de Gal Costa vestindo uma tanga e a contracapa mostrava os seios parcialmente cobertos por colares, o que batia de frente com os “bons costumes” que o regime autoritário pregava. O álbum foi censurado pela ditadura e passou a ser vendido envolto por um plástico azul, o que fez aumentar a busca pelo disco proibido e as vendas lhe renderam disco de platina em uma doce ironia.

O Álbum “Gal” (1969)

Quando criança, fui fisgado por Gal pela melodia vocal. Um pouco mais velho, Gal chamou a minha atenção pelo universo que criava em suas músicas. Depois daquele tempo, nunca havia parado realmente para ouvir Gal Costa como deveria, mas com a maioridade batendo a porta, um dia esbarrei com o disco Gal (1969) e, naquele momento, como um terceiro e certeiro golpe, fui imobilizado.

Gal Costa ainda era muito atrelada à Bossa Nova, mas a partir da sua apresentação de Divino Maravilhoso no Festival da Música Popular Brasileira em 1968, onde ela mostrou uma força vocal agressiva e ativa, a artista se encaminha para uma onda rock and roll. Gal, o segundo álbum solo de Gal Costa, tem uma forte presença de psicodelia catártica com uma sede de experimentar, resultado da angústia daquele tempo. 

Deixando a amenidade de lado em função da opressão da ditadura cada vez mais forte, Gal se transforma e lança o álbum mais arrojado de sua carreira. Com influências claras da guitarra eletrizante de Jimi Hendrix e a voz corajosa de Janis Joplin, Gal desfila no meio de uma loucura orquestrada. Enquanto seus maiores companheiros estavam exilados, ela se sentia sozinha sendo porta-voz do tropicalismo e usou de seus temores para criar este que é um dos maiores álbuns do rock nacional.

Gal Costa – Gal (1969)

Cinema Olympia e Tuareg

O álbum começa com Cinema Olympia, já com a cara da mistura de Hendrix com o Brasil de Gal. O Cinema Olympia ficava em Salvador e era famoso por suas matinês. A música é uma composição de Caetano Veloso, mas se destaca pela voz versátil de Gal, já demonstrando que esse trabalho seria diferente do que ela havia lançado antes. Ela vai de um refrão acelerado e gritado que não sai da cabeça para uma passagem suave, com uma voz calma.

A desértica Tuareg traz elementos árabes, fazendo referência aos tuaregues, um povo berbere que habita a região do norte da África e controlavam rotas no deserto do Saara. O guerreiro do deserto, Tuareg tem uma cultura de fortes costumes alimentados por uma vida de nômades em uma das regiões mais áridas da Terra.

Ela começa e termina com uma cantoria experimental misteriosa acompanhada pelo som do clarinete. Música composta por Jorge Ben Jor, ela consegue misturar uma estética árabe com ritmo quase de faroeste para narrar a caminhada aventuresca de seu personagem justiceiro que está sempre pronto para o que der e vier, o que pode ser interpretado como uma referência ao momento vivido no Brasil.

Cultura e Civilização

Com uma letra que parece um duelo entre o nacional e o gringo, a música composta por Gilberto Gil, Cultura e Civilização, levanta uma questão sobre um certo imperialismo cultural. A guitarra distorcida é embalada pelo baixo e bateria que se sobressaem em algumas partes. Gal Costa, com sua rouquidão aguda e agressiva, demonstra uma raiva que vai se transformando em cansaço e aceitação. 

“Contanto que me deixem meu licor de jenipapo”
“Contanto que me deixem meu cabelo belo”
“Contanto que me deixem ficar na minha”
“Contanto que que me deixem ficar com minha vida na mão”

Outras músicas

O disco ainda conta com uma versão da dançante País Tropical, música de Jorge Ben Jor, com os vocais de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Dá para sentir que Gal Costa e os amigos estão realmente se divertindo na gravação. É como uma lembrança para celebrar as pequenas coisas, justamente o que a música representa. O baixo, que é forte no disco inteiro, fica em destaque na versão.

Música escrita por Erasmo e Roberto Carlos especialmente para Gal, Meu Nome é Gal é uma das grandes músicas do álbum, onde se apresenta os jeitos da mulher que batia de frente com os costumes impostos pela época. A semelhança com Janis Joplin se destaca, acompanhada por elementos de soul ao lado do rock.

E as guitarras de Hendrix surgem fortemente mais uma vez, mas sem deixar a brasilidade de lado. Composta por Gilberto Gil, Com Medo, Com Pedro é quase uma lembrança de que eles não poderiam ter medo naquele momento. A psicodelia marca o transe com as fortes batidas da bateria, o baixo agitado e a guitarra gritante. Na faixa, a voz de Gal parece muito mais segura. É uma agressividade confiante, o que em outros momentos pode ser remetido a um desespero.

“Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo”

The Empty Boat é outra música em que podemos ouvir como a diversão rolou solta nas gravações. Composta por Gilberto Gil e Caetano Veloso, a letra é cantada em inglês, o que pode ser relacionada à atenção que a música brasileira tinha fora do país. Novamente com guitarra, baixo e bateria fortes, a música tem cara de revolução desde a escrita até a batida.

“Yes, my dream is wrong
From the birth to the death”
(Sim, meu sonho é errado
Do nascimento até a morte)

Objeto Sim, Objeto Não abre alas para o experimentalismo psicodélico. As vozes dos artistas pulsam de um lado para o outro em uma viagem que remete uma mistura de Pink Floyd com The Beatles de Sgt. Pepper’s, principalmente com a chegada do instrumental. 

Pulsars e Quasars fecha o disco. A música começa com um começo totalmente fora do comum, um ruído de guitarra acompanhado por gritos que remetem a algum animal e um duelo de dedilhados entre um violão e uma guitarra no fundo. Pulsars e Quasars marca o descontentamento de Gal pelo momento e reage ao posto de líder revolucionária do tropicalismo que recebeu no colo.

Mas e depois?

Gal Costa não parou de lançar novos trabalhos importantes: o seu último em vida é Nenhuma Dor, de 2021. Sem deixar de lado o sangue revolucionário, Gal se comunica com seu público antigo e a nova geração ao regravar antigas canções com convidados como Rodrigo Amarante, Criolo, Rubel e Tim Bernardes, além de rodar com várias turnês importantes, em que revisitou seus clássicos e trouxe duetos emocionantes.

Com as músicas e histórias que Gal deixou, sua resistência seguirá nos acompanhando por um bom tempo, eu espero. Estamos vendo cada vez mais forte o passado do outro lado da porta só esperando um descuido para entrar. E, como sempre pensamos neles quando se vão, o que podemos fazer é manter viva a força que Gal Costa teve e guardar um pedaço disso. 

“Fomos felizes e felizes fomos
E se já não somos, meu amor
Não se preocupe, não
Aperte a minha mão
Até a luz sumir em meio à escuridão
Você vai confiar em mim”

Créditos HL

Esse texto é de Igor Amarante para nossa coluna HL Sonoro. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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