Jô Soares: uma vida quase sempre divertida

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Jô Soares: uma vida quase sempre divertida
TQ SÃO PAULO 06.10.2016 CADERNO 2 EXCLUSIVO EMBARGADO Retrato de Jô Soares que dirige a peça "Troilo e Créssida" de Shakespeare no teatro do Sesi, na Avenida Paulista. FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

O livro de Jô – uma autobiografia desautorizada, primeiro volume das memórias de Jô Soares, é diversão garantida. Escrita em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr., leitor é levado ao Rio de Janeiro e a parte da Europa do século XX

Jô Soares
Foto: Tiago Soares/Estadão

A figura de Jô Soares para a geração que nasceu de 1980 em diante é quase uma só: a de um senhor gordo que entrevista pessoas. E que gosta muito, muito, de aparecer – muitas vezes, mais que os convidados. E que toca bongô de um jeito que parece não tocar nada.

Quem já deu uma googlada ou conversou com mais velhos sabe que José Eugenio Soares é mais do que isso. Muito mais: ator, diretor, comediante, humorista, escritor, artista plástico.  Esses são adjetivos que definem um pouco o gordo ao longo de 80 anos.

É por isso mesmo que o primeiro volume de memórias escrita por ele em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr. é essencial: apresenta-nos um Jô que ficou desconhecido – em partes, claro! – devido à vida dele nos últimos 30 anos.

“O livro de Jô – uma autobiografia desautorizada”(490 págs), lançada pela Companhia das Letras em 2017, conta o inicio da vida do mais famoso apresentador de talk-show brasileiro até os 30 anos dele.

 

Um burguês com vida de burguês

Filho único, José Eugenio Soares, cujo nome veio de um tio-avô paterno, nasceu em 16 de janeiro de 1938, no Rio de Janeiro, ainda capital República. A família, de costumes liberais, tinha relações com a alta burguesia brasileira: tinha gente no governo e na burocracia estatal.

Mais do que isso, os parentes estavam envolvidos diretamente com a high society carioca. A família era a típica representante da elite brasileira: frequentava o jockey club e outros salões sociais, e morava em um anexo do Copacabana Palace.

Nesse ambiente, Jô Soares cresceu e aproveitou a vida: estudou nas melhores escolas, viajou para fora do Brasil e, aos 12 anos, mudou-se para a Suíça para estudar. Ainda jovem, aprendeu a falar seis idiomas.

No inicio, pensava em ser diplomata, mas a vida o levou aos palcos. Assumidamente “carudo”, Jô gostava de aparecer já na juventude. Cantava, tocava, fazia piadas. Essa característica permitiu a ele participar de festas nas noites cariocas – e carreira como servidor do Estado foi se distanciando.

Jô, aliás, tentou ingressar em instituições renomadas no mundo. E conseguiu. Ele foi aceito em Oxford e Cambridge, mas não foi.

Teve de voltar para o Brasil após o dinheiro do pai dele acabar, em 1956, quando ele estava com 18 anos.

 

Uma família divertida

Boa parte das memórias de Jô não é dele: é de pessoas que conviveram com o humorista ou histórias que ele ouviu por aí.

Da mãe, Mercedes – conhecida como Mêcha – Jô Soares conta ótimas. Tipo quando ela teve de amputar dois dedos devido a uma doença causada pelo cigarro.

Seu primeiro comentário ao voltar da cirurgia:

– Vou exigir um desconto de vinte por cento da minha manicure.

Foi ela, aliás, que disse ao pequeno Jô que qualquer coisa poderia ser dita.

“Zezinho, não existe palavra feia. O feio está na cabeça de quem pensa que é feio.” Foi uma lição para toda a vida, uma dessas iluminações que clareiam o caminho: o humorista precisa ter toda a liberdade possível e impossível.

 

Jô Soares e os intelectuais

Jô viveu ao lado de intelectuais conhecidos: Millôr Fernandes, Otto Lara Resende, Ziraldo. Conviveu, também, com um personagem controverso: Assis Chateaubriand – velho amigo da família dele.

É do fundador dos Diários Associados que vem uma das tantas histórias engraçadas do livro. Chefe de muitas pessoas, com mil tipos de negócios, Chatô era uma grande figura – um típico personagem tupiniquim.

Diz Jô Soares que um dia o jornalista e empresário se encontrou com Almirante, uma importante figura do rádio brasileiro. E aí começou um diálogo.

 – Almirante, preciso de você. Venha trabalhar comigo.
Atônito, Almirante responde:
– Mas, doutor Chateaubriand, eu já trabalho para o senhor faz vinte anos!
– Então continue, Almirante, continue!

 

Assédio na infância

Aos seis anos, Jô foi assediado sexualmente em um pequeno cinema no Rio de Janeiro. Um homem se sentou ao lado dele e pediu levanta-se a pequena calça que vestia. Lembra-se Jô que o homem lhe disse:

– Olha, depois deste filme, a gente pode ir pro Cine Rex, eu conheço o gerente lá, a gente não precisa pagar o ingresso. […]

Eu respondi:

– Eu estou com minha governante, que está sentada aí atrás, preciso perguntar para ela se posso ir.

Quando ouviu isso, o homem se levantou e desapareceu.

Ao contar essa história em casa, o pai dele pegou um revólver e foi para porta do cinema. O objetivo: matar o sujeito, que não apareceu.

 

Viver na ditadura

Jô era um homem na casa dos 20 anos no inicio da ditadura militar (1964-1985) e, mais do que isso, um homem que trabalha com textos que eram montados em rádio, TV, cinema e teatro. Por isso, viu de perto a censura.

Já morando em São Paulo, ele e então esposa, Therezinha, abrigaram um dos físicos mais importantes do Brasil em sua casa: Mário Schenberg. Ele estava sendo caçado pela ditadura por ser comunista.

 

O nascimento do filho

Nem tudo foi comédia e diversão na vida de Soares. A família de Jô ficou pobre – em que pese ter mantido o prestigio. E ele teve de se virar.

(Se saiu bem, convenhamos: falava seis línguas, estudara fora, sabia ler e escrever produtos artísticos e consumia muita cultura internacional.)

Antes de ser famoso, pegava quase todo tipo de bico artístico para se manter.

O nascimento do filho, Rafael, em 1963, fruto do casamento com a atriz Theresinha, foi um dos principais baques na vida de Jô: a criança tinha autismo. Rafinha, como era chamado, morreu em 2014. Ao longo da vida, Jô foi criticado por supostamente escondê-la.

“Sei que muitas pessoas falaram que reneguei e escondi o meu filho. Não posso negar que a maneira como o Rafinha veio ao mundo mexeu muito comigo. Hoje consigo entender bem o que ocorre com os pais de filho especiais. Mas as pessoas não conhecem o dia de uma criança autista, o seu horro ao contato com outras pessoas, a sua necessidade de uma rotina rigorosamente igual todos os dias. Ele não queria ver o mundo e não queria que o mundo o visse.”

 

Em breve, mais histórias

Quem se aventurar a ler a biografia de Jô vai encontrar boa parte dos famosos do século XX no Brasil lá, artistas ou não: Sérgio Buarque de Hollanda, Ronald Golias, Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira, Cornélio Procópio – até papa e políticos. E por aí vai.

E olha que esse é só o primeiro volume das memórias.

A Companhia das Letras deve lançar neste ano o segundo volume das memórias.

Aguardemos.

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