O que afinal Nietzsche quer dizer quando fala em “ir além do bem e do mal”? E o que significa sua famosa frase: “Deus está morto”?
É fato que muito se escreveu e se escreve sobre a obra de Nietzsche, e de que a vontade de tentar compreendê-la nunca se esgota. Além do Bem e do Mal foi considerado pelo autor seu livro mais importante e abrangente. E podemos aqui tentar tecer algumas reflexões de forma inteligível, o que não é fácil e é até uma pretensão fazê-lo em tão poucas palavras. Por sinal, Nietzsche não pretendeu ser inteligível. Vamos apenas considerar que o mais fascinante na filosofia são as perguntas que ela provoca, e em especial na obra do filósofo alemão, a curiosidade que ela atiça. Mas que não esperemos respostas prontas e sob medida. Ele foi um pensador rebelde em sua época; e tentar domesticar ou demonizar Nietzsche não ajuda a compreender sua obra.
Esta é a melhor definição que já vi sobre a forma como Nietzsche se comunica com seus leitores: “às vezes Nietzsche parece estar gritando conosco; em outras parece sussurrar algo profundo em nossos ouvidos”.
Além do Bem e do Mal foi redigido no verão de 1885, na localidade de Sils Maria, na Suiça, e no inverno de 1885-6, em Nice, sul da França. Mas na redação foram incorporadas anotações anteriores da primeira metade da década. Após ser recusado por vários editores, Além do Bem e do Mal foi publicado às custas do autor, em agosto de 1886, numa edição de trezentos exemplares. Quase um ano depois, apenas 114 exemplares haviam sido vendidos, e 66 tinham sido enviados para jornais e revistas. Numa carta a seu amigo Peter Gast, Nietzsche disse: “Muito instrutivo! Ninguém quer o que eu escrevo”. Porém, mais de cem anos depois, a opinião da posteridade confirmou a do autor sobre a importância da obra: “É um dos grandes livros do século XIX, e mesmo de qualquer século”, nas palavras de Walter Kaufmann.
Dúvidas antigas sobre a moral humana: nossa essência é boa ou má? Nascemos bons e nos tornamos maus ou já nascemos maus e o meio é que nos coloca freios morais? Ou será que não nascemos nem bons nem maus, apenas dotados de instintos? E ainda, de onde surgiram os conceitos de bondade e maldade? Para Nietzsche, a religião, especialmente o cristianismo no Ocidente, criou valores que limitam o homem a se superar. A expressão “instinto de rebanho” em Nietzsche vem talvez de um conceito religioso, no qual a moral ensina ao indivíduo a só atribuir valor em função do “rebanho”, que também poderia ser traduzido em Estados e sociedades. O homem virtuoso, “escravo” das expectativas dos outros, das boas e das más opiniões, faz-se dissimulado, ao mesmo tempo culpado e infeliz.
“É por nossas virtudes que somos mais bem punidos”
Para Nietzsche, os valores não são verdades divinas imutáveis e sim criados por nós, portanto dependentes do tempo e do espaço em que se manifestam. Os critérios religiosos de bondade e compaixão que nos foram impostos acabaram se tornando um instrumento de barganha divina em troca de uma suposta imortalidade e felicidade eternas. Quando Nietzsche disse “Deus está morto”, ele estava querendo dizer que a crença em Deus estava deixando de ser razoável. E o que seria então do homem abandonado a si mesmo? Se Deus está morto e não serei mais recompensado e nem corro o risco de ser punido, então vale tudo? Não existe mais o bem e o mal?
Preferimos não nos confrontar com nossa realidade, pois se a conhecêssemos, possivelmente ela não nos agradaria, e quem sabe quando desejamos destruir algo no outro, queremos destruir aquilo que não suportamos em nós mesmos. A questão é até quanto podemos suportar de realidade. No entanto, Nietzsche não pretende dar uma solução para esse conflito essência/aparência, sendo o termo “aparência” na sua filosofia o mesmo que fenômeno, e a única maneira ao nosso alcance de conhecer e perceber o mundo. Não é para menos que o existencialismo, a filosofia analítica e a psicanálise tiveram em Nietzsche seu precursor.
Embora os filósofos se orgulhem de seus pensamentos e muitas vezes se gabem de ter encontrado respostas para as questões da existência humana, o homem continua a se envolver numa batalha sangrenta consigo mesmo (o que talvez mais tarde, na psicanálise, Freud definiria como conflito entre o Id e o Ego). Não há então para o homem resolução possível. As soluções que lhe são propostas são meras ilusões. Ao mesmo tempo, a ilusão pode ser uma solução na medida que permite celebrar a vida dentro de seus limites, em uma espécie de “ilusão consciente”.
O que afinal Nietzsche quer dizer quando fala em “ir além do bem e do mal”?
É possível que ele queira nos fornecer coragem para transcender o nosso modo de ser, ou melhor dizendo, um modo de consciência que observa o mundo sem definir as coisas como boas ou más, e sim apreendendo-as como se revelam para nós. Quem sabe podemos chamar essa condição de uma “grande lucidez”.
“O que alguém é começa a se revelar quando o seu talento declina – quando ele cessa de mostrar o quanto pode. O talento é também um ornamento; um ornamento é também um esconderijo.” (Nietzsche em Além do Bem e do Mal)