Há algo que sempre me intrigou quando se trata da vida e obra de Nietzsche, esse filósofo que usou a vida como experiência do pensar: o abismo que há entre o Nietzsche empírico, andarilho, filho, enfermo, irmão e o Nietzsche pensador que emerge principalmente em sua autobiografia, Ecce Homo. Por vezes, tenho a impressão de que Nietzsche (que, segundo Rüdiger Safranski, seu biógrafo, era chamado pelos colegas na escola de o pastorzinho) construiu toda sua filosofia, principalmente nos últimos anos, ao contrário do que realmente era, negando suas taras. É preciso farejar o que está além das aparências, como o próprio filósofo fez com os ideais ascéticos em Genealogia da Moral. Fazer com o filósofo-dinamite o que, segundo Deleuze, ele mesmo era mestre em fazer: um filho pelas costas. Olhá-lo com olhos de psicólogo.
Seguindo a teoria das forças, Nietzsche é dois e é dez, palco onde inúmeras feras encenam uma comédia trágica, “prefiro ser um sátiro antes que um santo”. A pergunta que gostaria de fazer é: qual dentre os diversos Nietzsche que disputam a soberania no si-mesmo de Friedrich se sobressairia? Qual seria o vencedor? O déspota? Nietzsche era mestre em disfarçar o que julgava serem fraquezas.
Em, Ecce Homo, deixa a seguinte pista falsa: “se combati o cristianismo, foi porque dessa parte não vivenciei fatalidades nem inibições.” Mentira. Poucas páginas adiante ele mesmo aponta seu ataque à moral cristã como sendo necessário para superar uma fraqueza: a tendência à compaixão, essa força dos fracos. Será que superou? E o incidente com o cavalo pouco antes do surto final?
Em um de seus aforismos, Cioran escreve: “Só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além”. Creio que Nietzsche vivia, como um pêndulo, entre forças opostas: Nobreza e Ressentimento, Atenas e Jerusalém, Cristo e Dioniso, Vida e Morte, nunca houve uma superação de fato das dicotomias. Ele mesmo escreve: “A felicidade de minha existência, sua singularidade, talvez, está em sua fatalidade: para exprimi-lo em forma de enigma, eu, como meu pai, já estou morto, como minha mãe, vivo ainda e envelheço.” Se houve, por fim, um instinto dominante, acredito que foi o do ressentido. É simples, admiramos e almejamos aquilo que não temos. Nietzsche escreveu nas antípodas do que de fato era. Quis pensar, morar no corpo: “É melhor que ouçais, meus irmãos, a voz do corpo são: é esta uma voz mais honesta e mais pura.Com mais honestidade e mais pureza fala o corpo são, o corpo perfeito e retangular: e fala o sentido da Terra”.
Quem lesse este fragmento sem saber que caos o deu a luz, imaginaria se tratar do texto de um grego da época de Homero, mas o autor, em verdade, era um doente. O próprio Nietzsche inventaria um conceito que serviria de ponte sobre sua cisão, o conceito de “grande saúde”, mas o que explicaria o colapso final? Não há nada que o autor de Zaratustra critique mais que aquilo que ele julga serem características do cristão, do último homem: a vingança, a astúcia, o feminino, a inveja, o ressentimento. No entanto, consta que, quando leu Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, (o livro cujo narrador mais se nos assemelha a uma barata que a um ser humano) anunciou empolgado: “Ouço aqui a voz do sangue!” Seria o filósofo alemão um cristão autêntico?
Para responder à pergunta, voltemos à infância, este país de onde tudo brota: 1856, 1855, 1854? Não. 1853, 1852? Ainda não. 1851? 1850? 1849? Sim, 1849? Quem reparou nos olhos do menino de cinco anos vidrados no pai que realiza com verdade e pureza uma de sua últimas pregações sobre o púlpito? De onde vem a idolatria de Nietzsche pelo pai? Quando se trata de Karl Ludwig, Friedrich Nietzsche parece estar falando de um anjo, de um ser etéreo, todo espírito. Será que não nasce a partir da morte do pai seu rompimento com Deus e com o cristianismo, porque ambos permitiram que seu velho passasse desta para melhor? Será que o pequeno Friedrich, sobretudo Friedrich, não rezou com toda sua fé e vontade, sozinho à noite, pela cura ou volta de seu pai e, no entanto, tudo se mostrou em vão? Deus é sempre mudo, não há, nunca houve. Ainda assim, por mais que intentasse, anos mais tarde escrever um Anticristo, escreveu muito mais um antipaulo.
Um dionisíaco brasileiro, Glauber Rocha, disse certa vez: “Não me exijam coerência, sou um artista”. Cabe muito bem aqui. Uma das características fundamentais de Nietzsche era homenagear com o martelo, destruindo, não seria a implosão do cristianismo seu grande monumento ao mesmo?
O cristão autêntico é um ser cindido (Raskólnikov em russo) corpo e espírito inconciliáveis. Nietzsche construiu toda uma filosofia ao contrário do que era, baseada no seu eu, ou vasto, ou si-mesmo, ideal. Seu espírito era Schopenhauer, mas seu canto dissimulava ser Emerson. Nunca perdoou a razão por ter destruído sua fé. Vingou-se. Quis morar no corpo, mas o corpo era o contrário da sua filosofia. Segundo sua própria fisiologia, quando o espírito está fraco, o corpo adoece. Em verdade, em verdade vos digo: um santo Agostinho sem conversão. Tivesse gritado adoração ao Cristo crucificado, seria um santo da igreja católica apostólica romana. Ou não?