O demônio da linguagem

0
o-exorcista1
Cena do filme “O exorcista” (1973)

A Literatura, a Música e o Cinema comandam um banco de palavras. Elas misturam suas produções e uma faz referência à outra, e neste banco sempre há espaço para clientes vitalícios, aceitos sem questionamentos ou cobranças. Seus correntistas favoritos são os pretensiosos (feito eu) que buscam lapidar o raciocínio pela linguagem ou pensar menos errado graças a ela, usando expressões dessas áreas no próprio cotidiano.

Há quem diga que esses três são apenas alguns dos gerentes desse banco cuja lógica está além da nossa compreensão, eles querem as palavras circulando. É como se tivessem um chefe para cada linguagem, desde o idioma gestual do Teatro àquele mais que visual das Pinturas. Me entendo com a Literatura, a Música e às vezes cumprimento o irmão Cinema. Os demais não têm pressa, aliás nenhum deles tem, seguros do investimento a longo prazo da palavra.

Posso falar disso por experiência. Não lembro quantos anos eu tinha quando me reconheci consumidor desse estoque de palavras, nem em que ocasião passei a ligar as pistas entre as produções que compõem meu repertório, apenas gravei a expressão: demonstração vulgar de força.

Essa é uma tradução de seu original em inglês, vulgar display of power. Topei com a frase graças ao CD que o Pantera lançou em 1992 e batizou com essa expressão, um belo nome para um álbum agressivo, pesado e que combina com ela em algumas letras. É como se um verso de uma de suas canções andasse com o nome do álbum: What did you say? Are you talking to me? O que você disse? Está falando comigo? Eis uma sutil demonstração vulgar de força.

Meu vínculo com a música do Pantera mudou bastante desde quando eu a ouvia com mais frequência, talvez hoje eu seja mais ouvinte de algumas músicas que da produção inteira da banda – o tipo de vínculo que a gente desenvolve enquanto palavras vêm e vão em nossos repertórios. Foi numa dessas trocas que o Cinema, este irmãozinho sacana da Literatura e da Música, me avisou: “saca esse filme, você vai entender”.

Saquei um filme e um livro, O Exorcista. Suponho que o Pantera aprendeu a expressão ali. O exemplar que tenho do livro a contém numa tradução meia-boca de 30 anos atrás, mas mantém o sentido; o filme a demonstra como a (re)conheci. Devo ter feito a maior cara de tolo quando percebi essa ligação, enquanto a Literatura, a Música e o Cinema sorriam ao me ver e me entregavam um papel com uma dica: “ela é sua”.

A cena do filme em que a frase é falada corresponde bem ao capítulo do livro. Um demônio se apossa de uma garota, mas está preso porque amarraram o corpo dela em uma cama. Isso não o impede de infernizar a mãe da criança. Quando o padre Karras entra no quarto, ele conversa com o demônio e o pergunta por que não desfaz as amarras, afinal ainda era um diabo preso em um corpo de uma menina humana. That’s much too vulgar display of power, responde a cria das trevas.

Assisti ao filme de novo, com o papel que os ‘meus’ gerentes do banco de palavras me entregaram em cima da mesa. “Ela é sua”. Me encontrei com eles pois precisava saciar a dúvida. A frase era minha? Claro, me respondeu a Música. O Cinema me serve um café e espera que eu fale, a Literatura me diz para deixar de ser preguiçoso e sacar a ideia.   

Lembrei de novo da cena e do álbum. Seria a ideia ridícula, pretensiosa e bacana de lapidar o raciocínio pela palavra o meu demônio da linguagem, me desafiando a lutar de igual para igual? Isso justificaria o diabinho do filme se manter preso enquanto me golpeia e aguarda um contra-ataque digno. Conto isso ao trio, que sorri e me passa uma nova instrução: “use-a”.

Não há posts para exibir