O lado C de Caê

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O lado C de Caê
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes e Gal Costa na estreia do programa que apresentava o Tropicalismo, “Divino Maravilhoso”, da TV Tupi, em 1968 /Estadão Conteúdo.

Os pesquisadores Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes revisitam a obra de Caetano Veloso em livro recente, Lado C.

Gilberto Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes e Gal Costa na estreia do programa que apresentava o Tropicalismo, “Divino Maravilhoso”, da TV Tupi, em 1968 /Estadão Conteúdo.

Meu canto não tem nada a ver com a lua

Caetano Veloso é um artista que está na trilha sonora da minha vida, assim como na de milhares de outros enternecidos, tarados, apaixonados, vidrados ou apenas respeitosos por aquilo que sua obra representa para a moderna canção popular brasileira.

Artista inquieto, mexeriqueiro (no bom sentido), assanhado, comportado, político, descacetado e senhorial: tanto quanto sua obra, o artista de Santo Amaro da Purificação é um gerúndio constante.

Foi um dos baluartes do Tropicalismo, movimento igualmente assanhado, que pôs a cultura brasileira para se repensar no final da década de 1960 e que reuniu outras cabeças malucas e (bem) pensantes da época: Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão, Torquato Neto, Rogério Duprat etc. Também foi um dos pontas de lança do “desbunde” do final dos anos 1970 e boa parte dos 1980, quando propôs guinar sua obra para gêneros mais dançantes e menos experimentais, mais pops e menos “cabeça”.

Não parou aí: sua obra é exemplar no quesito “frenesi”, já que passou por fases tão díspares quanto a baixo astral e experimental de “Araçá azul” até a dançante de “Bicho” e a pop de “Cores Nomes”. Afinal, são dezenas de álbuns, centenas de canções, milhares de (re)gravações.

Está justificado o fato de ele ser trilha sonora de um sem-número de pessoas.

A publicação do livro Lado C

Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes, cada qual com sua trajetória, com publicações na área da crítica musical, resolveram se juntar no início de 2021, naquele pós-2020 apocalíptico provocado pela pandemia do Coronavírus.

Tito já tinha escrito o seu “Querem acabar comigo”, que trata da carreira de Roberto Carlos, e lançado em março daquele ano. A respeito do encontro, Tito mesmo explica:

“Eu publiquei o do Roberto em março de 2021. Foi graças a isso que o Luiz me conheceu. Os livros dele, ele publicou ao longo de 2021 mesmo, enquanto a gente já estava trabalhando no Caetano”.

Os livro de Luiz têm títulos autoexplicativos: “Os 50 maiores shows da história da música” (saiu em maio de 2021 pela editora Belas Letras) e “Rock in Rio: A história” (da Globo Livros, original de 2011, mas expandido e reeditado agora em julho de 2022). Luiz gostou do livro de Tito, chamou para conversarem, e esse crush intelectual resultou nisso: Lado C: a trajetória musical de Caetano Veloso até a reinvenção com a bandaCê (Máquina de Livros, 2022).

As pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer

Seria maçante e repetitivo produzir um livro sobre a obra de Caetano. Pensando nisso, a dupla de autores resolveu fazer um recorte com a seguinte questão: o que representou o conjunto de eventos (três discos de canções inéditas, três ao vivo e grandes turnês em um período de dez anos), concebidos dentro do período da bandaCê (banda composta por três “meninos”: Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado) para a obra de Caetano? Existiria a bandaCê se outras bandas que já o acompanharam (a banda do álbum lendário “Transa”, a Outra banda da Terra, a Banda Nova, a era Jacques Morelenbaum) não tivessem existido?

As respostas estão no livro, que exala toda a pesquisa mais que exaustiva necessária para a sua costura.

Então, temos ao mesmo tempo um livro que trata da era “bandaCê”, sem, no entanto, desvinculá-la dos outros momentos, bandas e curtições perpetradas por Caetano ao longo de sessenta anos de carreira. De lambuja, escorre um pouco da história da cultura brasileira ao longo de sessenta anos.

Nada no bolso ou nas mãos

Surgindo em 1967, Caetano lançou no ano seguinte o “Tropicália”, estopim do movimento brevemente tratado no primeiro parágrafo. No fim de 1968, vem o AI-5, fechamento do Congresso, fim das liberdades individuais etc. O que sobrou? Prisão ainda em 1968 e o exílio no ano seguinte.

O parágrafo acima, breve, acenaria para o final de uma carreira artística, decepada logo em seu início. Depressão, esquecimento, suicídio e uma nota do rodapé de um jornal de pequena tiragem. 

Ledo engano.

O exílio em Londres foi marcante para a vida do santo-amarense, que produziu, em terras britânicas, o seu “Caetano Veloso” (1971), um disco duro, triste, cuja única música em português era “Asa branca”, quase sangrada, rasgada, eviscerada ou gritada num uivo de dor do lado de lá do Atlântico.

O disco que derivou da dor da saudade também fez Caetano desaguar no próximo, o “Transa”, até hoje tido como um dos pilares de sua obra fonográfica. Nesse disco, as proposições tropicalistas, que já eram um resgate de alguns pressupostos modernistas do início do século, são potencializadas e trabalhadas com uma banda que reuniu, sob a batuta de Macalé, músicos que abraçaram o projeto de fazer um disco com uma sonoridade própria – o que acabou sendo essencial para que até hoje seja inserido no “Top 5” da obra de Caetano.

O meu corpo vai ficar odara

Já em terras tupiniquins, Caetano produz concomitantemente “Joia” e “Qualquer coisa”, discos igualmente representativos de sua obra e seguidos por “Bicho”. Esse último representou nova guinada na carreira do compositor baiano, desta vez em direção à festa, à dança, ao corpo em movimento – o que gerou represálias e patrulhamentos ideológicos, alegando que o disco era alienante, delirante e fora da realidade que o país então vivia (a da Ditadura Civil-Militar brasileira, que pastou nestas terras entre 1964 e 1985).

Aliás, o mesmo patrulhamento foi sofrido por Gil, quando escreveu que o melhor lugar do mundo era aqui, quando lançou “Realce” e em outros eventos, mas aqui não tratamos especificamente de Gil.

Depois de um início pífio, o show “Bicho”, graças ao auxílio luxuoso de Arnaldo Brandão (autor do famoso riff de baixo da canção “Odara”), Vinicius Cantuária, Tomás Improta e Perinho Santana, “pegou”: estava formada A Outra banda da Terra, que também estaria presente em outros álbuns do filho de dona Canô: “Muito (1978)”, “Cinema transcendental (1979)”, “Outras palavras” (1981), “Cores nomes” (1982) e “Uns” (1983). Foi a fase mais feliz e de maior sucesso de público de Caetano, sobretudo com “Outras palavras” e “Cores nomes”.

Essa banda foi responsável por introduzir uma nova levada (apelidada por Gilberto Gil de “marcha caetaneada”) nas canções dos shows e discos. Essa nova forma de tocar, a “batida ao contrário”, constituiu-se como a marca do grupo e foi adotada e imitada por outros músicos, bandas e compositores.

Banda Nova

A outra banda da Terra encerrou seus trabalhos com “Uns”. A partir daí, uma nova estética passaria a dominar os arranjos das canções de Caetano, mais “profissa”. Começava a era da Banda Nova.

No final de 1984, é lançado “Velô”. Pop, eletrônico e sintonizado com as tendências da época (o auge do BRock, com Barão Vermelho, Blitz, Titãs, por exemplo). Este talvez tenha sido o seu disco mais “Anos 80”, escancarando os podres poderes que a Ditadura já de bengalas deixava escorrer em seus momentos de incontinência autocrática.

A partir daí, seguiu-se uma sequência de álbuns inéditos. Com eles, vários outros gravados ao vivo e acústicos, uma tendência que se iniciava à época e que agradou o público. Os álbuns “Caetano” (1987), “Estrangeiro” (1988) e “Circuladô” (1991) contavam com a participação de um músico que seria fundamental para a era seguinte na obra de Caetano: Jacques Morelenbaum.

O homem velho deixa a vida e morte para trás

A nova era foi inaugurada com “Tropicália 2” (1993), gravado com Gilberto Gil. Em seguida, como um resgate das canções ouvidas no rádio em Santo Amaro, veio “Fina estampa”: disco em espanhol com clássicos do repertório latino-americano, Caetano impecavelmente (caretamente?) vestido, uma banda enorme, produção impecável. Resultado: sucesso de público garantido, com 250 mil cópias vendidas no Brasil. Foi o auge da “era Morelenbaum”.

Em seguida, surgiu “Livro” (1997), lançado quase simultaneamente com seu livro “Verdade tropical”, em que o artista mistura memórias com uma dança de ideias sobre o Tropicalismo e, claro, sua carreira até então.

A carreira do artista baiano trazia apresentações menos despojadas, com produções mais severas, cenários bem costurados com as canções, um Caetano mais senhorial, elegante, até comportado. Alguns usaram o adjetivo “senhorzinho” para defini-lo nessa fase…

Mudanças no país e novas bandas

O Brasil mudava, respirando democracia e até viria a “impitimar” seu primeiro presidente, o senhor Fernando Collor. O rock apresentava novas bandas e compositores, menos “raiz”, que misturavam tendências e surpreendiam a plateia e os críticos: a banda Skank, com seu Jack Tequila, que vendeu mais de 1,2 milhão de cópias, Chico Science e Nação Zumbi com seus “caranguejos com cérebro”, os Raimundos com seu “ódio por automotores”, o Mundo livre S/A, O Rappa, Planet Hemp, os Mamonas assassinas…

Era muito ingrediente para ser processado em tão pouco tempo. Tudo muito criativo e livre, sem as amarras ideológicas do tempo da Ditadura.

Representante e contemporâneo da “galerinha” que misturava aquelas tendências todas. Jonas Sá afirmou que aquela geração tinha um desejo de romper com a MPB, ao mesmo tempo em que a celebrava, numa espécie de tropicalismo menos cerebral. 

Outra banda que despontou e chamou a atenção de alguns na mesma época foi a Mulheres Q dizem sim, que, apesar de não ter alcançado sucesso de público que derivasse em vendas de álbuns, influenciaria bandas, como Los Hermanos, e viria a ser fundamental para o próximo passo estético da obra de Caetano e para a formação da tal BancaCê.

Mas, antes disso, viria o “Noites do norte”, um disco de transição, pois contém a estética-Morelenbaum misturada a faixas em que Moreno e Pedro Sá dão o ar de suas graças e apresentam uma estética mais rock, seca, fragmentária, arestosa/pedregosa mesmo, beirando o experimental.

“Quem ouviu Máquina de fazer música, o disco de estreia de Moreno Veloso, detectou nas faixas o DNA paterno. Mas a recíproca é verdadeira em Noites do Norte (…)” (Tarik de Souza, crítico musical)

O mundo não é chato

Era junho de 2001. O extinto Jornal do Brasil publicava coluna de Caetano intitulada “O mundo não é chato”. Nela, o artista escreve sobre sua alegria de tocar com Pedro Sá e Davi Moraes, que ele conhecia desde criança. Eles os viu nascer e agora os via renascer como músicos potentes de linguagem inovadora.

Definitivamente, o mundo era muito legal naquele momento. E a turnê de Noites do norte espelharia essa alegria, esse renascer, tanto dos dois músicos quanto do próprio Caetano, que já namorava uma nova possibilidade sonora, uma reinvenção, uma nova frieira gostosa de coçar.

Em setembro do mesmo ano, o ataque às torres do WTC estarreceu o planeta e mergulhou Caetano em uma caverna de onde foi resgatado pela porralouquice de Jorge Mautner, velho parceiro de estrada com quem gravou um álbum “fora da curva” em sua discografia: o Eu não peço desculpa. Abalado por ter se separado de Paula Lavigne, a gravação do álbum seguinte, A foreign sound, uma coleção de supostos standards da canção estadunidense, fez Caetano atrasar sua conclusão por meses. Não eram tempos felizes, e o mundo voltava a ficar chato.

A BandaCê: todos eles são foda

Desculpe-me o leitor, mas um artista como Caetano não merecia que eu fizesse apenas uma resenha da fase da BandaCê, assim como os autores do livro, Luiz e Tito, não o fizeram. A envergadura de Caê para a cultura brasileira exigiria mais do leitor. 

Como dito, o período da BandaCê agremia três álbuns inéditos de estúdio, três ao vivo e algumas mega turnês. Os três álbuns são “” (2006), “Zii e Ziê” (2009) e “Abraçaço” (2012).

Caetano inicia o álbum “Cê” com a canção “Outro”: “Você nem vai me reconhecer / quando eu passar por você”. Esses não são apenas os dois primeiros versos da música, mas anunciam princípios que embasarão a nova fase do artista: irreconhecível, estranha, com arranjos que mais incomodam que abraçam o ouvinte, letras cruas, palavrões, adeuses repetidos ao chavão do lirismo de algumas antigas canções, como “Você é linda”.

Um Caetano ainda mais camaleão, ainda mais gerúndio estava se apresentando a um público boquiaberto com aquele senhor de madeixas prateando pelo passar dos anos, mas que se mantinha coerente com sua busca por novidades, intertextos, conexões. Ele era um hiperlink ativo que compunha, pensava, tocava e cantava.

Minhas Lágrimas

Essa fase reafirma as anteriores, bem como a predisposição do artista de virar as costas para si mesmo e seguir trilhas nunca dantes navegadas — como na letra de “Minhas lágrimas”, em que o eu lírico afirma que “nada serve de chão onde caiam minhas lágrimas”: tudo o que é chão, base, é perene, e perenidade jamais foi o sobrenome de Caetano Veloso.

Mas, ao mesmo tempo em que ele abre novas trilhas, mantém certo orgulho do que construiu até o momento. Isso fica patente quando, em outra canção deste primeiro álbum, ele escreve que “nada, nem que a gente morra desmente o que agora chega à minha voz”.

A fase BandaCê não só representou uma guinada na carreira do artista baiano, mas sobretudo uma forma de resgatar, de às vezes revisitar influências, desde as mais distantes, como Francisco Alves, até as mais recentes, como Seu Jorge e Los Hermanos, passando por intertextualidades mais claras, como a regravação a seu modo da canção “Incompatibilidade de gênios”, de João Bosco.

Por que será que existe o que quer que seja?

O poeta Marcelo Ariel tem um poema que diz que a superfície de um lago, antes de separar dois domínios, o do ar e o da água, os une. Assim é Caetano e sua obra ciclópica, mutante, careta e despirocada: nada separa, pois tudo, no fim, fica unido pela música e pelos poemas com que são forjadas.

Assim, terminada oficialmente a fase da BandaCê com o álbum “Abraçaço”, em 2021 Caetano Veloso lançou “Meu coco” — ao mesmo tempo uma mudança e uma continuidade do que ensaiou (e conseguiu) com a Banda “dos meninos”, a Cê.

Como ele mesmo escreveu em “Anjos tronchos”, canção de “Meu coco”, as referências de nosso mundo pós-globalizado são trançadas, misturadas, desmisturadas, respeitadas e desrespeitadas, pois essa época “pós” é antes de tudo a época do longo banquete, construído pelos artistas de tantos séculos, do qual devemos nos servir sem parcimônia.

Sorte nossa, Caê, vivermos nesse mundo coalhado de referências de que podemos nos servir — acepipes deliciosos que deliciam os multipaladares desse admirável velho mundo em desconstrução.

A Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes, autores de “Lado C: a trajetória musical de Caetano Veloso até a reinvenção com a bandaCê” (Máquina de Livros, 2022), agradeço o passeio por Caetano, pela história e — no meu caso, em parte — pela memória. 

Vale e cabe a leitura, sobretudo em um mundo onde ainda nascem ervas daninhas que asseveram sua platitude, em vez da redondeza comprovada pela ciência.

Ave, Caê!

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha para nossa coluna HL Sonoro. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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