O problema do humor machista em ‘A Megera Domada’, de Shakespeare

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Seria machista a proposta de Shakespeare em A Megera Domada? E se levarmos em conta a mesma censura que se aplica a Monteiro Lobato no caso do racismo?

Foto divulgação da releitura da peça A Megera Domada, dirigida por Ross McGreggor e interpretada no New Wimbledon Studio, London, SW19 1QG, until 20 June 2015
Foto divulgação da releitura da peça A Megera Domada, dirigida por Ross McGreggor e interpretada no New Wimbledon Studio, Londres, em 20 de Junho de 2015

Publicada em 1595, a comédia A Megera Domada apresenta um conflito ainda hoje possível. Um pai tem duas filhas. A mais nova é alvejada por propostas de casamento, enquanto a mais velha é recusada por causa de sua personalidade colérica. O pai se recusa a permitir que a mais nova case sem que a mais velha tenha subido ao altar. Surge então a figura do filho de um nobre, que deseja casar-se apenas com alguém que possa aumentar a sua fortuna. É aí que os candidatos a marido da filha mais nova confabulam em unir o jovem ambicioso à “megera.” O rapaz topa o desafio e acaba casando com a mulher colérica, sendo a situação conduzida ao tragicômico processo de modificação da esposa, até o final e ponto alto da peça, quando o jovem ambicioso faz a aposta com outros dois maridos sobre quem teria a mulher mais submissa.

Uma breve análise do que é a comicidade nos coloca diante da prerrogativa de que sem contexto não há humor. Isto fica mais claro quando se conta uma piada regional para alguém que desconhece a cultura satirizada, simplesmente não se ri. Basicamente, o contexto é o tempo que a pessoa dá aquela parada para fazer uma busca nas gavetas de sua memória, até que ache os pilares daquela questão e entenda a quebra de expectativa apresentada. E esta leitura coloca-nos mais uma vez diante da dificuldade de se escrever humor, pois o que é humor agora, daqui a pouco não é mais. Certo, mas como se vence a barreira do tempo?

Vamos considerar aqui que a peça saiu no final do século XVI, ou seja, nem de longe se avistavam as discussões feministas de hoje em dia. Neste ponto, temos um problema. Em nosso tempo, a premissa é machista ao extremo. No entanto, para época, havia certo humor. E agora? Temos um impasse.

São situações diferentes, mas recordemos as polêmicas em torno do racismo ou não de Monteiro Lobato. Talvez o escritor de literatura infantil mais famoso do Brasil, vem sendo defendido serem recolhidos os seus livros das crianças, graças às constantes insinuações racistas que os demais personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo fazem à Tia Nastácia. Alguns defendem que não passa de alívio cômico. E talvez fosse mesmo algo comum às pessoas da época. Contudo, é fato que aos olhos de hoje é racismo, preconceito, discriminação. Sem falar que estamos tratando de expor seres humanos em formação a um contexto artístico em que certos tipos de expressões racistas seriam comuns.

Talvez os censores estejam certos.

Minha discussão aqui é, se aplicados os mesmo critérios, não seria correto também discutir este “alívio cômico machista” que se vê em A megera domada? Longe de mim condenar Shakespeare, porém não podemos fugir desta reflexão. O que diferencia a questão do caso de Lobato é que dificilmente a peça do dramaturgo será lida por pessoas em fase de formação. Ainda assim, isso só mostra como o humor pode ser datado. É preciso de certa maturidade, de um pouco de contexto e estudo, para ver a arte na peça de Shakespeare.

Mas falo isso do ponto de vista de um homem. Não sei se eu conseguiria não me indignar, caso fosse do sexo oposto. Mesmo considerando que a peça é o retrato de uma época, espero que possamos concordar que é uma época que precisamos superar. E ainda falta muito.

Machismo não é motivo para humor. Só para mau humor.

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