Como a literatura constrói diferentes noções de romantismo conforme o sexo das personagens e até quando essa segregação dura.
O valor do amor no século XIX
Madame de Staël dizia: “o amor, que não é mais do que um episódio na vida dos homens, é a história inteira da vida das mulheres”. Podemos considerar que, em sua época, as mulheres tinham pouca ou nenhuma participação na sociedade para além dos afazeres domésticos e da criação dos filhos.
Como leitoras, seus interesses deviam se limitar aos romances “água com açúcar” que lhe transportavam para realidades apaixonantes e aventurescas, tão diferentes da rotina banal a que se submetiam.
A própria Madame de Staël escrevia obras desse tipo. Assim, o relacionamento amoroso era o foco da vida das mulheres. Estas não poderiam ambicionar muito mais do que arranjar um “bom partido” e com ele constituir uma família respeitável.
Em “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, temos um exemplar de personagem que vive iludida de paixão em paixão. Ela persegue eternamente o ideal do amor e não parece jamais se satisfazer. A princípio, acredita que seu casamento com o tosco Charles Bovary lhe trará um futuro diferente, uma posição social e uma vida interessante. Mas Charles não possui os mesmos sonhos que a esposa. Ele é muito mais modesto e se conforma com um cotidiano pacato, sem maiores pompas e circunstâncias. Emma procura, então, nos braços dos amantes as emoções desejadas.
Primeiro, se envolve com o cafajeste Rodolphe. Como ele quer apenas seduzi-la, ao perceber que ela se apaixonou e está entregue, foge na primeira oportunidade. Emma adoece e se enche de dívidas como consequência da aventura mal sucedida. Mais tarde, ela reencontra Leon, que, como ela, também é um romântico. Ele de fato nutre um afeto sincero pela Madame.
Durante algum tempo, os encontros entre os dois são o combustível que mantém Emma acesa. No entanto, o problema é que as expectativas da protagonista de Flaubert são tão altas que jamais poderiam ser atendidas na realidade. Por mais que Leon a ame, ele precisa manter sua posição na sociedade. É um jovem estudante de Direito, possui reputação e não pode arruinar sua vida para satisfazer os caprichos de uma mulher casada. Assim, quando ela lhe procura para pedir dinheiro emprestado para sanar suas dívidas monstruosas, ele nega e se afasta.
O fim trágico de Emma Bovary
Madame Bovary cai num espiral de desespero e angústia que lhe conduzirão ao seu trágico fim: o suicídio por envenenamento. Rodolphe segue sua vida de bon vivant. Leon segue sua vida de jovem romântico, e não deve demorar a encontrar outra grande paixão, até desposar uma moça que lhe agrade. Charles, o marido traído, ironicamente, é o único que se mantém fiel à memória da esposa.
Temos aí a tese da outra Madame, a de Staël, comprovada: o amor foi apenas um curto episódio na vida dos amantes, mas guiou a vida inteira de Emma. O que podia ser não mais que uma aventura para os homens se transformava na ruína da vida de mulheres desavisadas…
Se Emma tivesse sido mais parceira do marido e o ajudado a ascender socialmente, se conformando com o que lhe era oferecido, será que teria um destino diferente? Ou se tivesse de fato fugido com algum amante, mas de modo planejado e seguro, teria encontrado a grande aventura que tanta buscava?
Talvez. Mas quem teria sensibilidade o suficiente para perceber seu sofrimento e lhe fornecer conselhos sensatos de tal tipo? Não seria nos livros românticos em que se inspirava que encontraria respostas. Não seria tampouco na religião, extremamente fechada e machista na época. Como, então, evitar a tragédia de Madame Bovary, numa sociedade tão desigual, que não a levava a sério nem lhe oferecia tábua de salvação?
Mais um exemplo trágico
Outra vítima de leituras românticas e utópicas foi Luísa, de “O Primo Basílio”. O romance do português Eça de Queiroz nos mostra outra mulher casada que se ilude no amor e tem um fim trágico.
Luísa é seduzida pelo primo, o Basílio do título, como Emma por Rodolphe. Ela também se entrega à aventura, porém é enganada e abandonada pelo amante. O marido chega a perdoá-la, mas é tarde demais: a jovem definha até morrer, desgastada por tanto sofrimento.
E Basílio? Continua sua vida de conquistador, certamente fazendo novas vítimas pelos lugares que frequenta. Ao final, ainda passa de carruagem pela antiga casa da prima e debocha da situação. A ficção reflete as injustiças da realidade social.
A mesma questão na contemporaneidade
Vamos passar, então, à contemporaneidade. Livros românticos “água com açúcar” ainda fazem sucesso com o público feminino. Basta lembrar dos best sellers de Nicholas Sparks, muitos até adaptados para o cinema.
Outra nova moda é a dos romances de época, como os de Julia Queen. Será que eles ainda apresentam uma fuga para as mulheres cansadas de suas frustrações e da sobrecarga de tarefas a que se submetem? É provável que sim. E também é provável que elas busquem esses mesmos ideais de amor na realidade. O que lhes levará fatalmente a novas decepções.
O próprio “50 tons de cinza”, tão celebrado por sua ousadia, não passa de mais uma história clichê em que a protagonista se encanta por um homem misterioso e se submete a situações abusivas em nome daquele amor.
Em diversos livros, filmes e séries vemos muito mais doação e entrega por parte das mulheres. Parece que sempre depende delas o sucesso do relacionamento.
Sim, é claro que a realidade mudou. Conquistamos muitas coisas importantes. Mas o quanto, na essência, nossa sociedade realmente se modificou? E como a literatura nos ajuda a perceber isso?
Será que a máxima de Madame de Staël ficou mesmo no século XIX? Ou ela ainda ecoa de alguma forma dentro de nós? Madame Bovary, sou eu. Madame Bovary, somos todas nós. Até quando?