Minha Murilo: o ser fragmentado

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Minha Murilo: o ser fragmentado

Na obra “Minha Murilo”, de Carla Bessa, aprendemos sobre os excluídos através de uma protagonista transexual.

Carla Bessa

Uma protagonista trans

Há uma frase atribuída a Albert Einstein que diz que o mundo é um lugar perigoso de se viver, não tanto pelos que fazem o mal, mas sobretudo por aqueles que deixam o mal acontecer. Minha Murilo, da Carla Bessa, me pegou nesse interstício de maldade que nos habita e que parece fazer parte da constituição psíquica do Homo Sapiens.

Editado pela Urutau (2021), o livro, com menos de 150 páginas (a autora afirma ser uma novela, mas reluto em entrar nesse ringue, já que as fronteiras entre os gêneros vão-se esmaecendo cada vez mais), conta a história de Sasha, uma trans que faz programa nas imediações da Rua Augusto Severo, bairro da Glória, Rio de Janeiro.

A região, nos limites da Zona Sul carioca, é conhecida por ser ponto de venda de drogas e sobretudo de corpos, sejam masculinos ou femininos, cis gêneros ou trans.

O enredo

Sasha nasceu Murilo e, por obra de suas próprias lutas, “se decalcou do corpo de Murilo” (adorei esta expressão) para se transubstanciar em Sasha. Mora com Blanche, mulher cis e “puta de rua, como ela”, com quem divide as despesas.

Em uma noite qualquer, um táxi para, ela entra, adormece no banco de trás, é obrigada a aspirar clorofórmio e acorda cativa de seu raptor.

É a partir deste ponto que a frase de Einstein começa a se costurar semanticamente com os sentidos de bem e mal, amor e ódio deslindados na estranha relação construída entre Sasha e seu raptor, um homem com algumas questões mal definidas quanto à sua própria sexualidade.

No princípio de seu período cativo, Sasha habita o porão da casa, sem janelas ou qualquer comunicação com o exterior. Suas únicas relações são construídas com o raptor e com um cão.

Aos poucos, no entanto, os dois, ela e seu raptor, desenvolvem uma estranha relação, atribuída a tal Síndrome de Estocolmo, segundo a qual a pessoa raptada cria uma relação de dependência empática e de afeto com o seu algoz. Costuma ser o resultado da situação de desamparo e submissão extremados daquele que sofre o ato de violência.

Os excluídos

Proponho uma breve pausa. Saiamos daquele porão onde Sasha se encontra cativa e olhemos para a realidade à nossa volta:

Há uma parcela bastante significativa da humanidade em situação de desamparo e de submissão a instâncias as mais diversas (a um governo autocrático, a uma situação de guerra, ao mercado, ao marido, ao patrão, ao senhor etc.).

Portanto, essa primeira leitura nos permite chegar a: Sasha representa uma humanidade impedida de uma série de momentos de felicidade, positividade e realização pessoal. Há refugiados, neoescravizados, asilados, exilados, pobres e miseráveis.

Há também os que se aproximam de Sasha, pois seu exílio se deu por conta de sua condição sexual ou de gênero: todos os que escorregam e não se enquadram na chamada heteronormatividade acabam se refugiando no único território que dominam: seu próprio corpo. O mundo não lhes pertence, e eles não se sentem inseridos no mundo.

LGBTs, islamitas, refugiados, pretos, obesos: Sasha acaba por abarcar esses exilados dessa tal contemporaneidade que, a despeito de um ou outro que se alinha à sua luta contra a exclusão, majoritariamente considera-os uma subparte da humanidade (da tal civilização?), não merecedora das suas benesses.

Acabo a pausa para retornar ao livro.

Uma obra mais realista

A narrativa difere da encontrada nos dois livros publicados anteriormente pela autora, ambos os volumes de contos (“Aí fiquei sem esse filho”, Oito e Meio, 2017, e “Urubus”, Confraria do vento, 2019 – vencedor do último Jabuti de melhor livro de contos).

Se nos contos a autora explora os limites da oralidade ( “Aí fiquei sem esse filho”) e a precisão narrativa (“Urubus”), neste “Minha Murilo”, novela-quase-romance (!), a escrita se expande, afasta-se dos textos breves e abre-se, mais realista, para o gênero mais “espaçoso” sem, no entanto, perder a potência das metáforas que a contista trouxe para o texto longo.

Mergulha de cabeça no universo particular da protagonista (Murilo/Sasha) e de seu algoz, um carrossel no qual o leitor passa, despercebidamente, a perder a noção dos limites: onde começa o algoz e termina o cativo?

Essa mescla de domínios também faz lembrar a famosa questão de Maurice Blanchot que, na década de 1940, se perguntava se existe autoria sem a conclusão de uma obra; se existe obra sem um público que a contemple; se existe público sem um autor que produza elementos de cultura. Assim, a existência do cativo é ligada à de seu raptor? Sem raptor não há cativo? Os dois podem, em algum momento, se confundir?

Analisando o título

O título da obra é um caso à parte: “Minha Murilo”. Em primeiro lugar, chama a atenção a óbvia falta de concordância entre o primeiro termo, feminino, e o segundo, masculino.

Em seguida, o pronome possessivo torna igualmente evidente, à primeira vista, a relação de propriedade que o raptor constrói em relação a seu capturado. Só que, na porção final da obra, ele é ressignificado numa espécie de plot twist muito interessante, em que o verbo “decalcar”, utilizado no princípio da obra, é reutilizado pela autora, pois os decalques em espiral tornam a visão turva e os domínios ainda mais mesclados: quem é Murilo, Sasha ou o confuso raptor? Que papéis estão destinados a esses seres?

Conclusão

Particularmente não me apetece escrever sobre uma obra tão logo termino sua leitura. Gosto de saborear as impressões deixadas em mim pela narrativa. As exceções a esta regra acontecem quando a história me movimenta de forma mais peculiar que as demais.

Como ultimamente tenho-me deixado impressionar por obras que tratem de personagens e histórias disruptivas, que tratem de universos não hegemônicos (não-brancos, queer etc.), “Minha Murilo” mereceu este pequeno texto analítico.

Como bom aprendiz, lembro-me de uma professora de redação que me ensinou o tal “fecho de ouro”: termine o texto como o iniciou. Assim, encerro este conversa lembrando que os males da civilização (comportamentos nada empáticos, preconceitos, exclusões, agressões ou violências abertas) são perpetrados não somente por seus atores diretos, mas por cada um que, de uma forma ou de outra, encontra-se inserido nessa mesma civilização e se cala diante da barbárie.

“Minha Murilo” ensina que o mal pode vir dos lugares menos suspeitos.

Cuidado.

Referência

BESSA, Carla. Minha Murilo. Cotia, SP: Urutau, 2021.

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João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

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