Afinal, todo mundo pode ser escritor?

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Afinal, todo mundo pode ser escritor?

Mesmo sem atribuir demasiado peso para procedências, a Literatura tem seus pré-requisitos.

Conceição Evaristo sabe o que é ser escritor

Parece lógico pensar que nem todo mundo tem vocação para ser cirurgião plástico. Ou psicanalista. Ou físico. Mas quando se trata da escrita, do fazer literário, existe a falácia de que qualquer um pode ordenar algumas palavras e automaticamente se transformar num escritor. A Literatura é pra todo mundo, dizem.

Sim, a Literatura é para todos. No sentido de que pessoas de diferentes países, gêneros, classes, etnias, culturas e orientações podem ser tocadas por ela. E também que pessoas de variados ambientes ou conjunturas podem produzir material literário.

A mineira Conceição Evaristo e a cubana Teresa Cárdenas são exemplos de autoras que não tiveram uma formação literária tradicional, criadas inclusive em locais afastados dos livros, mas que vieram a produzir textos de qualidade, que as consagraram como grandes escritoras. A Literatura não é elitista quanto a sua abrangência e derivação. Mas é um equívoco pensar que Evaristo e Cárdenas foram meros pontos fora da curva.

Apesar do pouco contato com livros durante a juventude, Teresa cresceu embalada por narrativas de tradição oral, contadas em roda, ao som de muita música. Essa bagagem revelou-se essencial para seus escritos. O ritmo, inclusive, é um de seus traços mais característicos. Desde menina teve acesso ao saber popular, em geral menos valorizado do que o letramento, mas nem por isso menos importante. As cantigas ouvidas por Teresa contavam histórias, tinham enredo. Quando uniu essa influência ao contato com a Literatura (que nada mais é do que um modo de narrar) encontrou sua voz de escritora.

Já Conceição Evaristo nasceu em uma favela, numa família muito pobre. Desde cedo precisou conciliar os estudos com o trabalho de doméstica, passando por várias situações de descaso e preconceito. Foi a partir do contato com o Grupo Quilombhoje (coletivo dedicado a aprofundar a experiência afro-brasileira na Literatura) que começou a produzir material literário. Pouco tempo depois, já havia publicado romances e coletâneas de contos e poemas. Conceição levou sua vivência social e racial não apenas para seus textos, mas também para a pesquisa acadêmica, tornando-se professora na UFMG.

Sensibilidade semelhante pode ser encontrada na produção de Carolina Maria de Jesus. Apesar do limitado acesso a livros ao longo da vida, foi alfabetizada e gostava muito de leitura. Desse modo, pôde transcrever sua aguçada percepção das desigualdades às quais estava submetida em diários. Mais tarde, esse material se transformaria no livro Quarto de Despejo.

O que as escritoras acima mencionadas têm em comum – além de uma formação que se diferencia da de boa parte dos autores – é o olhar ativo, sensível e curioso que caracteriza qualquer pessoa que trabalha com criação. No caso, voltando esse olhar para a palavra escrita.

E elas não são as únicas a trilharem caminhos diferentes para chegar às Letras. Mia Couto é biólogo. Maria Valéria Rezende é freira. Rachel de Queiroz foi jornalista. Moacyr Scliar atuava como médico. Mesmo com formações distintas, compõem um grupo de excelentes autores.

Assim, é possível dizer que todas as figuras acima mencionadas possuem/possuíam vocação literária – a capacidade de transformar percepções e sentimentos em narrativas escritas –, que foi desenvolvida de modos diferentes. Em geral, essa vocação despertou a partir do gosto pela leitura e, com ele, o desejo de contar as próprias histórias, à sua maneira. Como aconteceu com Clarice Lispector, Machado de Assis, Lygia Bojunga, Walter Campos de Carvalho e assim por diante.

Para ser escritor, é necessário ter um olhar diferenciado sobre o mundo: atento, perspicaz, sensível, crítico e, ao mesmo tempo, encantado (intrigado) com aquilo que percebe ao seu redor e/ou dentro de si, sendo capaz de traduzir essas percepções em palavra escrita. De onde o autor veio ou pelo que passou não são elementos que se sobrepõem à existência desse olhar canalizado em prosa, em verso.

Eis o único requisito que a criação literária exige. Sem esse olhar demorado e atencioso, não importa quantos cursos ou oficinas se façam, não se pode ser verdadeiramente um escritor, não é possível construir aquilo que chamamos de Literatura.

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Doutoranda e mestre em Comunicação pela UFF, sendo formada em Publicidade e Propaganda pela UFRJ. Atua como consultora acadêmica, escritora, revisora, copidesque e redatora publicitária. Autora do livro infantil "O Mirabolante Doutor Rocambole", finalista no Prêmio Off Flip de Literatura. Integra a coletânea "Contos de Encantar o Céu", que compõe o catálogo da 56ª Feira de Bolonha e o acervo básico da FNLIJ. Assina a peça "Entre Nuvens e Ladrilhos", montada pelo coletivo Paraíso Cênico. Sua pesquisa de mestrado sobre maternidade nas mídias sociais, vencedora do Prêmio Compós, em breve estará disponível em formato livro. Acabou criando um site para dividir textos, dicas, investigações e projetos no mesmo espaço.

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