Catálogo de perdas reúne contos breves de João Anzanello Carrascoza e fotografias de Juliana Monteiro Carrascoza
Colaboração de Renato Tardivo*
Em Catálogo de perdas (2007), o que atravessa as narrativas – e as imagens – são, como indica o título, perdas: do pai, da mãe, do irmão, da avó, do amigo, da esposa, da inocência, do não saber, da infância… A temática, recorrente na obra de Carrascoza, encontra aqui uma forma ainda diferente: a intensidade das narrativas breves em diálogo com a atmosfera arcaica das fotografias.
Na contracapa do livro, está escrito que a obra é inspirada “no acervo do Museum of Broken Relationships (Zagreb, Croácia), que reúne em exposições temporárias relatos e objetos enviados por pessoas do mundo inteiro – símbolos catalisadores de suas relações ‘partidas’”. Neste catálogo, mais especificamente, os relatos em primeira pessoa e os objetos investidos de afeto atualizam a fértil correspondência entre o conto e a fotografia: a existência desenhada em instantes.
O diálogo entre palavra e imagem, neste livro, está em consonância com o que escreve Barthes em A câmara clara. O autor afirma que a fotografia provoca um sentimento doloroso e enigmático porque revela o que já não é: “imagem viva de uma coisa morta”, um “isso foi”, uma “imobilidade viva”. Carrascoza revela a potência – e a beleza – contida na dor; assume que viver é perder, mas intui que as perdas são condição para novas ligações.
Em “Balão”, um dos contos mais tocantes, diz a narradora: “Aí entendi o motivo pelo qual meu pai me negara tantas vezes o balão: para eu não enfrentar cedo demais a minha primeira perda. Porque depois não haveria outra saída – e não há! -, senão aceitar todas as outras que, numa sequência inclemente, virão. O dia do sim foi também o dia do maior não que eu experimentei”. Não é aleatório que as fotos de Juliana Monteiro Carrascoza sejam apropriações de fotografias já existentes – ao que parece, de um mesmo álbum de família (na ficha técnica lê-se que se trata da família da própria fotógrafa). Nesse sentido, a expressão “imagem viva de uma coisa morta” também serve à perfeição. Perder é, a um só tempo, testemunhar o retorno dos antepassados.
Outra marca das narrativas de Carrascoza que no diálogo com as fotografias sobe de escala é a empatia. As cicatrizes que os espinhos deixam nos corpos das personagens as tornam mais sensíveis à condição – e fragilidade – humana. Perder é, também, aprender a cuidar. Assim, o que impele as personagens a seguir adiante é a reparação – o que não apaga as cicatrizes, mas lhes confere relevo, tessitura, linguagem.
Catálogo de perdas remete às fotomontagens de Greta Stern, fotógrafa alemã radicada em Buenos Aires que, na década de 1940 e 1950, a partir da perspectiva da psicanálise e do surrealismo, notabilizou-se por ilustrar uma série de relatos de sonhos (enviados por leitoras) na revista Idilio. Com efeito, a ancestralidade das fotografias em preto e branco de Juliana Monteiro Carrascoza e a forma com que elas se apresentam no livro (no forro das narrativas) aludem ao inconsciente do texto ou, utilizando expressão de Merleau-Ponty, ao impensado do texto. Não se trata, portanto, de tornar visíveis os enigmas invisíveis das narrativas e, na mesma direção, tampouco os contos são traduções das imagens. Palavra e imagem correspondem-se aqui ao potencializar a ambiguidade última (e primeira): perder é sonhar.
* Escritor e psicanalista. Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê) e Silente (7Letras).