Qual é o comprometimento do romance com a realidade? Esse gênero literário reproduz e transporta a realidade para ficção?
O romance busca capturar a realidade, mimetizá-la. Tal reprodução, no entanto, não necessariamente deve ser fidelíssima ao que se observa no plano real: pode-se dizer que o romance tenta apreender a realidade e transportá-la, transportar seus caracteres para a sua dimensão – a dimensão ficcional.
Há a necessidade de que a história faça sentido, de que em si seja de tal forma coesa que aparente ser absolutamente possível ao leitor, por mais traços de absurdo que possa apresentar. A coesão também corrobora para a aparência de realidade, portanto. Os fatos se mostrarão possíveis quando bem concatenados, bem relacionados, não importando de que natureza sejam. A coerência de tais fatos (amplos) parte de fatores justificativos (menores), os quais, bem organizados, produzirão a verossimilhança, formarão a verdade das personagens, dos fatos, da obra.
Partindo, pois, para uma instância menor de mimetização do romance, são os pormenores, os detalhes, os objetos do real ficcionalizados – os quais, na obra, não perderão suas características, mas assumirão um papel, desempenharão uma função – que, se bem concatenados, bem dispostos, irão complementando-se, imbuindo-se de sentido e dando solidez à personagem, formando-a de acordo com a aparência pretendida pelo autor. Percebe-se aqui a relevância da descrição; bem entendido, não a descrição banal, funcionando apenas como mero povoamento do espaço ficcional, mas a descrição significativa, a descrição que assume papel revelador e caracterizador das personagens.
Ressalta-se, entretanto, que a realidade do romance mostra-se relativa e paradoxal, posto que essa tentativa de aproximação com o real é totalmente flagrante: a mimese denuncia a si mesma, a busca pela simulação de realidade revela-se pela mesma forte aparência real do romance. A mimese é, portanto, imperfeita e, se perfeita fosse, não seria mimese: seria vida pura. Compactua com este jogo de (re)invenção, é claro, o leitor, aceitando o que lhe é narrado.
A ficcionalização do real em algumas obras
Retornando ao aspecto da descrição como um fato gerador de sentidos (técnica largamente utilizada pelos escritores realistas), é possível exemplificar com a inscrição da leitura em algumas obras. O livro, a leitura e até mesmo a não leitura pode funcionar como indicador das personalidades.
Em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, por exemplo, o objeto “livro” é presente em toda a história e, além de ele desempenhar o papel de trazer impressão de veracidade, também atua como caracterizador de perfil. Luísa, a sonhadora, lê sempre romances românticos. Na obra O Primo Basílio, a ficcionalização do real assume a função de criticá-lo, realçando o que, para Eça, está corrompido na sociedade. O autor apreende uma parcela deste meio, buscando atingir o todo, mostrando suas mazelas como em espelho convexo, caricaturizante.
A Ema Bovary, de Flaubert, do mesmo modo se mostra uma leitora, percebendo assim a prisão que lhe é o casamento. Em “Missa do Galo”, de Machado, as duas personagens que conversam na sala possuem cada uma suas leituras que lhes indicam a personalidade: uma, a senhora, se divertindo com romances românticos e a outra, o adolescente, com os Três mosqueteiros. O Dom Quixote, que praticamente dispensa apresentações, enlouquece de tanto ler os romances de cavalaria de seu tempo.
Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, personagens de uma realidade distópica leem livros por nós conhecidos e buscam salvá-los do aniquilamento. Indo além da esfera de leitores, temos em A morte em Veneza, de Thomas Mann, a personagem-ensaísta Gustav Aschenbach; em A hora da estrela, de Clarice Lispector, o narrador é também o autor do livro (e desta forma, uma personagem), que se desvela no próprio processo de escrita.
O romance é ancorado na realidade
Assim todas as descrições funcionam no romance. Vão constituindo as personagens, a sociedade, dando-lhes trejeitos e estabelecendo-lhes limites, tornando-as mais e mais familiares e apreensíveis até mesmo mais de que os seres do mundo real (de nossa esfera de vida), posto que a mais profunda personagem tem ainda uma profundidade delimitada pela/na obra, dentro de sua bordas.
O gênero romance, conclui-se, mostra-se sempre ancorado – ou buscando ancorar-se – na realidade. Apoiado nela, cria. Com ela estabelece um elo. Ficcionalizando o real, torna-o mesmo mais compreensível. De certa forma, é como se fosse preciso que ele seja visto por outro prisma, mais distanciado, para que possa ser apreendido.