Ensaio sobre o romance protesto e suas modalidades distintas, apresentados no livro Protesto e o novo romance brasileiro, de Malcolm Silverman
Breve introdução
O livro Protesto e o novo romance brasileiro, de Malcolm Silverman, que recebeu o prêmio de Melhor livro de ensaios da Associação Paulista de Críticos de Arte, é um livro importantíssimo para que não se apague da memória uma era pavorosa, mas rica no que diz respeito à safra literária durante o período de ditadura militar no Brasil.
O autor comenta e analisa, neste seu trabalho, as obras literárias que foram publicadas – algumas até censuradas logo após a publicação – de 1964 até os anos 80, que têm caráter de protesto. O livro é um estudo sintético, mas muito abrangente, dos romances e suas técnicas narrativas para contestar, questionar e revelar um Brasil que vivenciou o autoritarismo, a repressão, a opressão e, inclusive, a violência constante.
Protesto e o novo romance brasileiro é dividido em nove capítulos, organização que não é feita de modo involuntário e sem uma justificativa. Estes capítulos são organizados de acordo com as características mais pertinentes e explícitas dos romances brasileiros pelo autor estudados. Essa divisão, portanto, organiza o material estudado com objetivo didático de interligar temáticas e formas.
Este ensaio tem como foco central abordar as características do romance protesto e suas modalidades distintas, as quais Silverman destaca como o “romance jornalístico”, o “romance memorial”, o “romance da massificação”, o “romance de costumes urbanos”, o “romance intimista”, o “romance regionalista-histórico”, o “romance realista-político”, o “romance de sátira política absurda” e, por fim, o “romance de sátira política surrealista”.
As modalidades de romances, de acordo com Silverman
1. Romance jornalístico
Esta modalidade de romance surgiu em decorrência da censura da imprensa no período de ditadura militar brasileira. Como não é novidade, no período ditatorial a censura estava em seu auge e cerca de 90% das notícias eram “questionáveis”. Esta modalidade romanesca surgiu da combinação de um público ansioso por notícias confiáveis com jornalistas sedentos e capazes de oferecê-las por um “canal paralelo”, “uma alternativa viável” e por meio de um “negócio de edição lucrativa”, conforme destaca Silverman.
Vale ressaltar que os romances, nesse sentido, não tinham o objetivo central de formatar um pensamento social, mas projetar, reproduzir na ficção um caso de injustiça social e violência comprovados, quase sempre contra aqueles menos favorecidos social e financeiramente.
Alguns dos exemplos de romances citados e comentados são os livros de Lúcio Flávio: O passageiro da agonia, Aracelli, meu amor e Devotos do ódio; de Valério Meinel: Claúdia Lessin vai morrer, Aézio, um operário brasileiro e Avestruz, águia e cocaína; de Aguinaldo Silva: A república dos assassinos, O homem que comprou o Rio, O inimigo público e A história de Lili Carabina; O Caso Lou, de Carlos Heitor Cony; Liberdade condicional e Cara Coroa Coragem, de Sinval Medina.
2. Romance memorial
As memórias estão na ficção há muito tempo, e têm como característica uma narração intimista a partir da qual constrói-se imagens, reflexos do coletivo, do social por meio das metáforas. Em função do seu caráter autobiográfico, o romance memorial é inseparável do autor, seja individualmente ou enquanto membro de uma sociedade. De acordo com Silverman, este estilo literário memorialístico observa tanto de dentro quanto de fora os acontecimentos e os fatos históricos brasileiros, colocando-os de forma episódica em uma perspectiva contemporânea. Destaca, ainda, que o memorialismo ficcionalizado é híbrido e variado e o mais difícil de ser categorizado no que diz respeito aos limites de onde começa e acaba a ficção; além disso comenta que os principais e mais conhecidos participantes desse estilo memorial são Machado de Assis, Raul Pompéia e Lima Barreto.
No período ditatorial, os romances memoriais ficaram populares por, sobretudo, atender a uma necessidade simbiótica e até catártica dos escritores e dos leitores. A ficção era, por assim dizer, um modo atraente de reconstituir a memória coletiva do que havia acontecido, uma função até semelhante do romance jornalístico – ou romance-reportagem, como também costuma ser chamado.
Exemplos de romances apresentados por Silverman são Guerra é guerra, dizia o torturador, de Indio Vargas; Tempo de ameaça, de Rodolfo Konder; Os carbonários, de Alfredo Syrkis; Câmera lenta, de Renato Tapajós; Tirando o capuz, de Álvaro Caldas; O dia de Angelo, de Frei Betto; Que isso, companheiro?, Crepúsculo do macho e Entradas e bandeiras, todos de Fernando Gabeira; entre muitos (muitos mesmo) outros romances.
3. Romance de massificação
O crescimento desordenado nos grandes centros urbanos no Brasil foi exacerbado no período ditatorial, em geral em função da emigração de retirantes das zonas rurais e emigração de pessoas dos estados mais pobres. Esses sujeitos saíram em busca das promessas de oportunidades de emprego e melhor qualidade de vida, muitas vezes imaginárias, o que produziu áreas metropolitanas com milhares de famintos, onde a miséria gerou o crime, a frustração, a violência e as mortes – por causa da fome e por causa da violência.
A falta de moradia, infraestrutura inadequada – quando existente – transporte público, segurança, mínimas condições sanitárias, educação básica e controle de poluição geraram aquilo que chamam de “regiões marginais”, nas quais as pessoas são invisíveis para os ricos do país e para, sobretudo, o governo. Esse conflito social implícito em alguns romances, é explícito no romance de massificação, ou como costumam chamar de sinônimo: romance-problema, o qual registra, mas não tem objetivo de apresentar soluções ou respostas à desordem política, social e histórica da nossa realidade urbana, resultado das relações sociais e da moderna metrópole tanto almejada que buscava grande expansão e desenvolvimento das cidades, mas esquecia dos seus cidadãos.
São citados os livros Tragédia brasileira, de Sérgio de Sant’Anna; O caso Morel, A grande arte, O cobrador, entres outras obras de Rubem Fonseca; Homo brasiliensis, O ventre, Tijolo de segurança, entre outros romances de Carlos Heitor Cony; Engenharia do casamento, Solidão em família, entre outros de Esdras do Nascimento; O homem sem rosto e Passeio de cavalo morto, de Olympio Monat; Bebel que a cidade comeu, de Ignácio de Loyola Brandão; Um cão uivando pra lua, O Inferno é aqui mesmo e O vespertino, todos de Antônio Torres; entre tantos outros autores e suas obras.
4. Romance de costumes urbanos
Diferente do romance de massificação que foca na situação do indivíduo enquanto vítima, isto é, naquele que é massificado pela máquina coletiva sufocante da sociedade brasileira, o romance de costumes urbanos encara de modo diverso os seus personagens.
Os temas tendem a se manifestar nas figuras individuais, cujas angústias refletem não só questões fundamentais do ser humano e sua natureza, mas também preocupações mais transitórias, decorrentes dos excessos violentos pós-64. Uma espécie de mistura entre a comédia de costumes tradicional com o romance satírico completo.
São citados romances de Jorge Amado, como Gabriela, cravo e canela, Os velhos marinheiros, Os pastores da noite, Dona flor e seus dois maridos, entre outros; obras de Marcos Rey, como Malditos Paulistas, Ópera de Sabão, Esta noite ou nunca; Simulacros e Amazona, obras de Sérgio de Sant’Anna; Camilo Mortágua, de Josué Guimarães; Pau Brasil, de Dinorah do Valle; e os mais diversos romances e livros de contos de outros autores.
5. Romance intimista
Essa modalidade de romance é permeada pela angústia existencial, imperativos estilísticos, possui uma escrita densa, possui um hermetismo mental, que olha mais pra dentro do que pra fora, e isto não quer dizer que esse romance não possua comentários sociais. Seu ponto alto está na luta imemorial contra as adversidades naturais ou produzidas pelo homem, de acordo com Silverman.
Nasce, muitas vezes, de uma tensão entre o escritor e a sociedade; trata-se de uma consciência sociopolítica dentro da moldura do romance psicológico. Nesse estilo, os valores tradicionais ou domésticos costumam dominar muitos dos romances.
São citados romances como A hora da estrela, de Clarice Lispector; Signos da agonia, de Autran Dourado; Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar; Um dia no Rio e Passo de Bandeira, de Oswaldo França Júnior; Avalovara, de Osman Lins; Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro; A fúria do corpo, Bandoleiros, Rastros de verão, Hotel Atlântico, todos de João Gilberto Noll; além de outras obras de escritores diversos.
6. Romance regionalista-histórico
O regionalismo na literatura brasileira já não é novidade, está presente em diversas obras já consagradas e tem buscado recriar os costumes, a história, a topografia e até mesmo a linguagem e atitudes daqueles sujeitos pertencentes a uma zona rural, isolados do todo nacional.
No entanto, esse gênero tem evoluído gradativamente, e tem cada vez se direcionado a reproduzir a realidade do interior de modo a desmitificá-la ou denunciá-la, em justaposição ao seu correspondente urbano similarmente permeado pela opressão. Muitas vezes os personagens são comparados metaforicamente com elementos da flora ou fauna brasileira ou são polarizados. Estas são as características centrais do romance regionalista-histórico.
São citadas as obras Romance da pedra do reino, de Ariano Suassuna; A barca dos homens, de Autran Dourado; Um nome para matar e A saga do cavalo indomado, de Maria Alice Barroso; O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho; Maíra, de Darcy Ribeiro; Vila Real, de João Ubaldo; entre outras tantas.
7. Romance realista-político
Conforme o próprio autor destaca, esta modalidade de romance é difícil definir e é ainda mais difícil isolar alguma obra com precisão. Tratam-se de romances que apresentam grande influência política em sua temática, mas suas qualidades ou até mesmo deficiências estilísticas colaterais chamam mais atenção.
O romance no período pós-64 é uma espécie de estudo em fragmentação, social ou estilística, com comentários políticos implícitos. É testemunha e, ao mesmo tempo, promotor de um aparato governamental que, por um período, permitiu, sustentou e até mesmo promoveu um modelo violentamente cruel de ordem socioeconômica.
As obras citadas e comentadas são No país das sombras, de Aguinaldo Silva; Operação silêncio e A condolência, de Márcio Souza; A serviço del Rei, de Autran Dourado; Reflexos do baile e Quarup, de Antonio Callado; Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony; e outros romances.
8. Romance da sátira política absurda
Neste romance artifícios inverossímeis servem para reforçar a impressão de uma realidade fotográfica, através de um contraste crescente, o qual ressalta o caráter absurdo de um determinado caso narrado. Como Silverman destaca, “tratar o incomum como usual, o inesperado como lugar-comum, e sem recurso ao sobrenatural, não pode deixar de ajudar a reunir, e até esmaecer, as distinções entre a loucura convencional e política pós-64”, expondo, desse modo, os fatos ao ridículo e à gozação.
O humor é, portanto, comum e abundante nos romances da sátira política absurda, este mostra o comportamento antissocial imutável marcado por cenas nas quais se fazem presentes a violência, o abuso sexual, a tortura e a morte. O mundo mimético apresentado nas narrativas, paradoxalmente, é desconfortavelmente semelhante ao original, isto é, neste que vivemos, o qual é igualmente ilógico.
As obras citadas por Silverman e comentadas brevemente são: A febre amorosa, de Eustáqueo Gomes; Farda fardão camisola de dormir, de Jorge Amado; Cágada, ou a história a passo de, de Gladstone O. Mársico; Roda de fogo, de Ildásio Tavares; O simples coronel Madureira, de Marques Rebelo; O exército de um homem só, de Moacyr Scliar; entre outras.
9. Romance da sátira política surrealista
Esta modalidade de romance concentra-se nas anomalias políticas e, de acordo com Malcolm Silverman, costuma criticar hiperbolicamente o ultraje da sobrevivência do dia presente, consequência dos excessos da ditadura e resultante da inépcia do governo. Preocupa-se em narrar os diversos problemas sociais, através da utilização de espaços e personagens totalmente imaginários e até mesmo grotescos. Nela, o humor é abundante e se sobrepõe à seriedade exigida pela temática do romance.
Trata-se de uma combinação entre o absurdo e o irreal e que parodia o Brasil, por meio da literatura, abrangendo, com frequência, a distância histórica tanto do passado quanto do futuro; há, ainda, transposições geográficas e alusões frontais inevitáveis a figuras e eventos contemporâneos.
São citadas pelo autor as obras A ressureição do general Sanches e A eleição do ditador, de Cristovam Buarque; A hora dos ruminantes, Sombra dos reis barbudos, Os pecados da Tribo e Aquele mundo de Vasabarros, todos de José J. Veiga; Fazenda Modelo, de Chico Buarque; Zero e Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão; entre muitas outras obras literárias.
Conclusão
Faz-se interessante trazer aqui a questão da importância da existência do romance protesto. E levarmos os leitores a pensarem na questão da fixação do romance protesto socialmente: ele ficará em nossa memória?
É fato que o romance protesto cumpriu sua missão no que diz respeito a ser combativo, ele expôs e denunciou as realidades obscenas de um Brasil que viveu a ditadura militar de forma violenta, realidades estas em que a nação estava submersa. Seja através da sátira, da individualidade dos personagens ou dos costumes de um povo, o romance protesto, em suas mais distintas modalidades aqui abordadas, contemplou, de modo artístico, a história e a frustração coletiva do país.
Os romances citados não são, na totalidade, excelentes no que diz respeito a qualidade estética literária, mas alguns já são considerados clássicos da literatura brasileira moderna, isto é, romances dos melhores que são socialmente engajados. Aqueles considerados pela crítica – e até esquecidos por ela – de menor qualidade constituem, ao menos, registros históricos interessantes.
Referência
MALCOLM, Silverman. Protesto e o novo romance brasileiro. Tradução de Carlos Araújo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.